terça-feira, 4 de junho de 2013

QUANDO A TRAGÉDIA BATE À PORTA

“Nós não pedimos para ser eternos, mas apenas para não ver os atos e as coisas perderem subitamente o seu sentido. O vazio que nos rodeia faz-se então sentir...”

Antoine de Saint-Exupéry, em Vôo Noturno


Eu não conhecia o Thiago. Era uma criança de três ou quatro anos, como os meus filhos. Estudava na mesma escola que eles e estava com aquele uniforme que me é tão familiar. Possivelmente, nos esbarramos em alguma festa de Natal na casa de um tio da Júlia, já que havia algum grau de parentesco entre eles; soube, mais tarde, que ele foi a uma das festas de aniversário dos meus meninos. Thiago poderia ser só mais uma criança anônima em meio à nossa correria do dia-a-dia, mas, ontem, nossos destinos se cruzaram. Um barulho terrível na rua para onde dá a janela do meu consultório. Gritos desesperados. Um atropelamento. Interrompo a consulta e vou até lá ver o que houve. Em dois ou três minutos, vejo uma criança estirada, escoriada, completamente ensanguentada, inconsciente; do seu ouvido, saía muito sangue. Seguindo o instinto de médico, desobstruo vias aéreas, verifico a respiração e o pulso, nessa ordem. Alívio. Thiago respira e mantém a pulsação, embora fraquinha. Suavemente, eu e mais dois desconhecidos fomos massageando seu coraçãozinho até que o socorro chegasse. Olho suas pupilas dilatadas, sem vida, sem resposta à luz. Penso no pior. Não consigo dividir isso com ninguém e prossigo, maquinalmente. Eventualmente, acaricio seu rostinho machucado e sussurro "aguente aí, amiguinho, nós vamos te ajudar". Ele ainda respira e pulsa quando os Bombeiros e o Samu chegam, mas é tarde. Uma provável fratura de base de crânio e hemorragia intracraniana já haviam selado seu destino. Soube, depois, que ele teve uma hemorragia torácica grave. Pouco mais de duas horas depois do acidente, as tentativas  de reanimá-lo cessam. A multidão vai se dispersando. Os policiais cuidam da parte burocrática e fico aguardando a perícia na companhia de um dos avôs. Quase não nos falamos, perplexos diante da fragilidade da vida. Perplexos em pensar como, em um átimo, projetos inteiros se desmoronam, vidas - de quem foi e de que fica - são despedaçadas. Perplexos diante da nossa impotência em tal situação. Penso que o Thiago estava correndo feliz e, no segundo seguinte, a Morte - fria, pragmática, inflexível e implacável - tirou ele de nós. Chego em casa e abraço meus filhos. Sussurro no ouvido deles que, a partir de hoje, tem um novo anjinho protegendo suas vidas. Eles sorriem. Choro muito. Nem me lembrava de quando havia chorado pela última vez; a dureza da vida e as agruras da profissão nos deixam frios, distantes, diante de dramas mais corriqueiros. Penso em como a pressa, a impaciência e a vaidade nos afastam do que realmente importa. Thiago me fez lembrar disso intensamente ontem. Prometo que não te esquecerei, meu amiguinho! Aí, ao lado do Papai do Céu, olhe por nós!

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

FORMA X CONTEÚDO

O texto que se segue bem que poderia ter o subtítulo de "noções de psicopatologia para leigos", pois tenta explicar a essência da principal ferramenta que o psiquiatra e o psicoterapeuta têm para suas condutas: o exame do estado mental ou exame psicopatológico. 
Freqüentemente, aqui no consultório recebo clientes que se preocupam em relatar, com a maior minúcia possível, os detalhes de uma situação específica que os levou a procurar ajuda. Claro que, quanto mais rica for a narrativa (ou o conteúdo do discurso do cliente), mais elementos o profissional tem para formar seu raciocínio, mas o que a maioria não percebe é que, o que mais diferencia uma boa consulta psiquiátrica de um bom papo com seu melhor amigo, é a capacidade do profissional de enxergar a forma com que esse conteúdo é colocado. Para ilustrar, imaginemos algumas situações. 

Primeira situação: uma moça descreve um grande sofrimento (digamos que o pai seja alcoólatra e ela tenha medo de que ele a moleste ou que essa mesma moça esteja sendo vítima de algum tipo de chantagem do namorado, por exemplo) de maneira desesperada, aos prantos e no limite do que ela parece dar conta de suportar. Agora, imaginemos uma outra moça com a mesma idade, mesma condição social e mesmas características físicas descrevendo rigorosamente a mesma situação que lhe traz sofrimento, mas que, no lugar do desespero da primeira, narra sua dor de maneira aparentemente ingênua, chegando mesmo a sorrir diante de detalhes mais embaraçosos.

Segunda situação: três amigos estão conversando em um bar quando um quarto conhecido chega e insulta um deles. Perplexo, outro se pergunta o que está havendo e o terceiro responde que o insultado dormiu com a ex-namorada do agressor. Agora imaginemos rigorosamente a mesma cena, mas que a explicação seja a de que o agressor teve um acidente de carro, bateu com a cabeça e, desde então, tem tido um comportamento estranhamente impulsivo.

Creio que o leitor já percebeu qual é o ponto que quero defender. Por mais minuciosa que seja uma narrativa, o mais importante para o ponto de vista de um profissional é determinar - e, se possível, ajudar o cliente a enxergar - em que bases está fundamentada a essência do seu sofrimento - e, nem sempre, a essência desse sofrimento está ligada a fatos concretos da maneira que são vistos pelos pacientes. Nos dois exemplos citados, embora o conteúdo dos problemas seja, essencialmente, o mesmo, é a clareza da visão da forma que irá determinar condutas completamente diferentes e expectativas mais realistas quando ao resultado dessas condutas.
Na prática rotineira do consultório, costumo comparar a visão do psiquiatra à de um técnico de futebol assistindo o jogo da arquibancada, podendo assim, ter perfeita noção do desenho tático da partida que se desenrola, enquanto que o cliente, via de regra, tem a visão do jogador que está em campo: mais próxima, mais detalhada, porém mais estreita do que está acontecendo para que seu desempenho esteja dentro ou fora de suas expectativas. 
Nos dias de hoje, diante da necessidade de padronizar diagnósticos e condutas, a psicopatologia é uma ciência que vem sendo equivocadamente substituída por diagnósticos criteriológicos que empobrecem a prática psiquiátrica e inviabilizam qualquer abordagem mais global do sofrimento dos pacientes; no caso do profissional que não domina bem a psicopatologia, o máximo de compreensão empática que ele pode oferecer é a mesma do exemplo acima, a do velho amigo em uma mesa de boteco.
O domínio da psicopatologia é tão importante que, embora não seja psicoterapeuta, freqüentemente me deparo com clientes insistindo para marcarem horário semanalmente (ou até duas vezes por semana) aqui no consultório. Para quem está chegando agora ao mercado, fica a sugestão, que me foi dada ainda no primeiro ano de residência por um preceptor que acabou se tornando um grande amigo e é um dos mais sensíveis psicoterapeutas que já conheci:

"Não se preocupe tanto com tratamentos sofisticados, aprenda primeiro a fazer um diagnóstico perfeito; não se preocupe, inicialmente, com a arte da psicoterapia, aproveite todo o tempo que tiver para dominar primeiro psicopatologia"

Infelizmente, o que mais se vê por aí é justamente o contrário.





Karl Jaspers (à esquerda) e Sigmund Freud (abaixo), os criadores da psicopatologia clássica e da psicopatologia psicanalítica, respectivamente: riqueza de conhecimento que tem sido subaproveitada.