terça-feira, 28 de janeiro de 2014

PRECONCEITO X DISCRIMINAÇÃO

Com alguns meses de "delay", publico um texto que escrevi a pedido do grupo Padecendo no Paraíso, por ocasião de um comportamento discriminatório ocorrido contra uma aluna de um colégio particular da zona sul de Belo Horizonte - onde, aliás, havíamos cogitado matricular nossos filhos...

Preconceito x Discriminação


- Muçulmanos são fanáticos religiosos
- Judeus são mesquinhos
- Alemães são racistas
- Ingleses são frios
- Franceses são arrogantes
- Latinos são desonestos
- Americanos são ignorantes


Quem nunca ouviu pelo menos uma - senão todas - das afirmativas acima ao menos uma vez na vida? Em quê se baseiam? Por que o ser humano é tão preconceituoso?

A pedido da minha esposa, Júlia, mãe dos meus pequenos Felipe e André - esse último portador de diabetes tipo 1 - vou tentar discorrer um pouco sobre as origens e desdobramentos dessa nossa característica ao mesmo tempo tão nociva e tão necessária para a sobrevivência desde os primórdios da humanidade.

Antes de começar, me permitam uma breve apresentação. Sou médico formado pela UFMG em 2000 com residência em psiquiatria pelo HC-UFMG. Já passei pela psiquiatria clínica pelo SUS em nível ambulatorial e hospitalar, assim como pela docência em algumas faculdades privadas, pelas perícias cível e criminal e pela medicina privada e de planos de saúde, também em níveis ambulatorial e hospitalar. Posso dizer, com muita segurança, que um dos maiores desafios para o psiquiatra, além do diagnóstico e tratamento correto das enfermidades psíquicas, é o de ajudar o cliente que o procura a vencer preconceitos que vão sendo criados e cultivados junto com a formação da sua personalidade.
Preconceito pode ser definido, de uma maneira geral, como uma idéia preconcebida a respeito de uma pessoa (ou grupo de pessoas), lugares ou objetos. Trata-se, portanto, de uma avaliação prévia, muitas vezes sem um embasamento concreto, que tenderá a definir uma conduta a respeito da pessoa, lugar ou objeto avaliado.
Antes que se diga que preconceito é sempre ruim (o que seria, em si mesmo, um preconceito!), é bom deixar claro que se trata de um instrumento de sobrevivência. Uma bela jovem evita passar por lugares ermos à noite porque ela já carrega, desde menina, a idéia de que esses lugares são perigosos. Crianças evitam abordagens de estranhos porque carregam a idéia preconcebida, incutida pelos pais, de que estranhos são malfeitores em potencial. Se alguém vir uma pessoa com uma suástica tatuada no braço, certamente fará um juízo a respeito do caráter dessa pessoa e evitará o contato com ela. Portanto, preconceito é um termo amplo e muito abrangente. Estamos exercendo preconceitos o tempo todo, até porque o nosso psiquismo não teria como processar cada estímulo que aparece a todo instante e só fazer um juízo a respeito desses estímulo depois de uma longa deliberação.
O problema maior é quando o preconceito determina atitudes discriminatórias injustas, baseadas em idéias falsas, muitas vezes disseminadas por ignorância ou para que o indivíduo encubra seus próprios medos e fantasmas.
Voltando aos exemplos de maus preconceitos enumerados no início deste texto, a respeito de alguns povos e religiões, eles são fruto de ignorância e, via de regra, as idéias preconcebidas tendem a ser corrigidas quando a pessoa é colocada em contato com aquele grupo; de um modo geral, não causam maiores danos.
Para falarmos, no entanto, das idéias discriminatórias que nascem da parte mais sombria do nosso psiquismo, consideremos que todo ser humano tem um ideal de beleza e perfeição (“Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança”, segundo a Bíblia) e um dos seus medos mais secretos é o de não corresponder a esse ideal. Assim, na formação de nossa personalidade, nos deparamos constantemente com limites físicos ou estéticos que tentamos esconder o máximo possível. Quem nunca desejou ser um pouco mais alto, um pouco mais magro, um pouco mais forte, ter melhor desempenho nos esportes, ser objeto de desejo sexual, ter os filhos mais bonitos, inteligentes e educados da face da Terra?
Quando nos deparamos com alguém que foge a essa estética imposta por séculos e séculos de civilização, tendemos a nos sentir incomodados porque essas pessoas nos lembram de nossos próprios fantasmas, limites e imperfeições, segundo um conceito moral nem sempre verdadeiro. Uma parada gay, por exemplo, lembra aos heterossexuais que eles têm um aspecto homossexual na formação de suas personalidades que gostariam de esquecer. Um obeso tende a lembrar a muitos não obesos que eles comem mal e se exercitam menos do que gostariam. Uma criança com algum tipo de deficiência lembra aos outros pais que pode ser que seus filhos não sejam assim tão perfeitos. Enfim, quando somos confrontados com a fragilidade do nosso ideal de perfeição, tendemos a exercer mecanismos de defesa para afirmar a nossa “superioridade” em relação àquela minoria e abafar nossos medos e preconceitos a respeito dos nossos próprios limites. Daí nasce o comportamento discriminatório, uma das piores características do ser humano.
Na semana passada, uma menina de apenas 07 anos, acometida há seis meses pela diabetes tipo 1, foi um exemplo típico de uma vítima dessa comportamento nocivo, como ficou notório nas redes sociais. A resposta do colégio a essa situação delicada foi a pior possível, só reforçando uma filosofia antiquada e preconceituosa contra as diferenças, que tanto incomodam o ser humano - chegou-se ao absurdo de afirmarem que o comportamento discriminatório era necessário para que a menina não fosse discriminada!
Focando o problema apenas nas crianças, exemplos como o descrito acima não faltam e a abordagem nas escolas, quando ocorre, costuma ser tímida e pouco objetiva. Fala-se muito em “não ter preconceito”, algo impossível, como demonstrado acima, já que o preconceito faz parte da formação da nossa personalidade. O que é preciso dizer, sem hipocrisia, é que o preconceito existe e que, se não for reconhecido e adequadamente trabalhado, poderá levar a atitudes discriminatórias muitas vezes injustificáveis e, em casos extremos, descambar para o bullying e outras formas mais abertas de violência social e psíquica.
Uma abordagem que sempre surte efeito e que pode ser facilmente usada, são as palestras com exemplos inspiradores de superação de diferenças. Exemplos como o de Hector Castro, atacante e maior ídolo da seleção uruguaia campeã da Copa de 1930, que não tinha uma das mãos; ou de Fanny Blankers Koen que, aos 30 anos e já mãe de duas filhas, ganhou, contra todas as probabilidades, quatro medalhas olímpicas em 1948 (não houve as Olimpíadas de 1940 e 1944, quando Fanny estava no auge da forma física, por causa da II Guerra e a percepção geral era a de que seus anos de ouro já tinha passado) e o título de atleta feminina do século; ou do físico Stephen Hawking, que, apesar de uma rara doença degenerativa que praticamente o isolou do mundo, é considerado um dos mais importantes cientistas da atualidade.
Outra dinâmica que pode ser sugerida para os pedagogos é a de convidar as crianças a enumerarem suas deficiências e limitações, visando uma mais fácil inclusão da criança com algum tipo de necessidade especial naquele grupo.

Em uma era de mudanças rápidas e informação imediata, como a que vivemos, não há mais espaço para idéias cristalizadas e arraigadas em conceitos antiquados. Termos como “diga não ao preconceito” soam incompletos. Precisamos reconhecer que a discriminação gerada pelos maus preconceitos existe é o principal fator de sofrimento que pais, alunos e instituições precisam enfrentar, se quiserem um bom lugar ao sol em uma sociedade cada vez mais plural e mais aberta a acolher as diferenças, apesar de todos os desafios que ainda temos pela frente.