terça-feira, 31 de julho de 2012

CULTURA (NEM SEMPRE) INÚTIL

Uma dos requisitos mais importantes de quem se propõe a prestar um serviço que depende, essencialmente, de criar empatia com o interlocutor, é ter uma boa bagagem cultural. Diagnosticar e tratar quadros médicos cotidianos não é lá muito difícil, mas perceber as sutilezas das demandas dos pacientes e de se diferenciar a ponto dele perceber que sua escolha por este ou aquele profissional realmente valeu a pena depende da nossa capacidade de entender e penetrar em seu universo. Assim, não é raro me ver discutindo especulação na bolsa de valores, viagens internacionais, publicidade, geopolítica, arte, história, filmes clássicos, moda feminina, música clássica, aviação e - óbvio para quem me conhece - carros antigos, entre outros temas tão diversos quanto fascinantes. Tais discussões costumam ser o caminho mais fácil para conquistar a empatia necessária para a chamada "aliança terapêutica", através da qual os tratamentos tendem a ser muito mais eficientes, mas não é exatamente isso que se pretende discutir aqui hoje.
Apesar de ter uma bagagem razoável para transitar por temas tão diferentes quanto os que citei, não me considero, naturalmente, especialista em nenhum deles, mas o interesse genuíno pelo discurso do interlocutor pode, de vez em quando, produzir resultados surpreendentes como o que narro a seguir, ocorrido há poucos meses.
Tenho um cliente que é absolutamente fascinado (o mais correto seria dizer "adoecido" ou "enlouquecido", mas não ficaria bem em um blog sobre um consultório psiquiátrico...) por aviação. Perto dele, apesar de entender um pouco do tema, posso me considerar um "aspirante a principiante" e, como seu quadro psiquiátrico tem estado sob controle, sempre sobra tempo, nas consultas mensais, para um ótimo papo sobre aviões e suas histórias.
Paralelamente a isso, um grande amigo de cerca de 30 anos de idade, diabético desde os 15, andava chateado porque foi detectada uma degeneração em sua retina atribuível ao quadro de diabetes, apesar do seu rigorosíssimo controle da glicemia e de atividades físicas regulares. Esse amigo mora há cinco anos na Ásia e, por contingências profissionais, viaja muito pelo mundo.
Voltando ao cliente dos aviões, estávamos conversando sobre os primórdios da aviação civil e os problemas que foram sendo superados com o progresso da tecnologia aeronáutica, até que ele citou um desafio que continua inalterado em um século de história:

- Pois é, Doutor, veja que coisa curiosa. Desde cedo, percebeu-se que diabéticos têm tendência a ter descolamentos de retina quase imperceptíveis em vôos mais longos. Pensou-se que, com a pressurização das cabines isso não ocorreria mais, mas esses descolamentos continuam acontecendo...

Para um diabético que voa uma ou duas vezes por ano em viagens de turismo, a repercussão dessa observação só é significativa em um prazo de décadas, mas para esse amigo, que chega a fazer três vôos intercontinentais por ano, fora a infinidade de vôos pelo sudeste asiático, o organismo já cobrou seu preço - felizmente, ainda perceptível apenas em exames sofisticados, de modo que ainda é perfeitamente possível uma evolução benigna se alguns hábitos forem modificados, o que já está sendo feito após o meu alerta e a consulta dele ao especialista.
Cabe dizer aqui que este amigo é acompanhado por um endocrinologista e um oftalmologista, ambos de competência inquestionável, mas que não tinham levantado essa possibilidade, talvez porque a informação seja muito mais familiar ao meio aeronáutico do que ao meio médico, até pela rotina intensa de vôos que é necessária para que o problema se manifeste, algo ainda relativamente pouco comum no Brasil.
De qualquer forma, fica um relato bem ilustrativo de como "sorte" e "acaso" tendem a sorrir mais para quem está atento a pequenos detalhes, mesmo quando a consulta médica objetiva já aparenta ter dado tudo o que tinha que dar.
Os clientes agradecem (e, nesse caso específico, agradecem uns aos outros...).


Um Junkers Ju-52 dos anos 30 e um Antonov 225 atual. Apesar dos avanços tecnológicos, os diabéticos continuam penalizados pela aviação

quinta-feira, 19 de julho de 2012

PSIQUIATRIA E ARTE

"Pode ser que você ainda não tenha se dado conta disso, mas o fato é que todas as coisas belas do mundo são filhas da doença. O homem cria a beleza como remédio para o seu medo de morrer. Pessoas que gozam de saúde perfeita não criam nada. Se dependesse delas, o mundo seria uma mesmice chata. Por que haveriam de criar? A criação é o fruto do sofrimento" - Rubem Alves

Certa vez, um determinado laboratório estava promovendo seu medicamento, ao qual vamos chamar pelo nome fictício de "Deprimex", associando-o à figura de Van Gogh. Assim, a cada mês em que eu recebia a visita do representante, vinha junto uma reprodução de alguma obra do mestre holandês ou um livro sobre sua turbulenta biografia, sempre enfatizando o diagnóstico de transtorno bipolar do qual ele padecia. Até que, um dia, o pobre representante perdeu a chance de ficar calado:

- É, doutor, se já extstisse o Deprimex naquela época, o Van Gogh teria vivido bem melhor...
- Mas não seria o grande Van Gogh que conhecemos - foi o que consegui responder.
Auto-retrato de Vincent van Gogh (1887-88)
Vivemos em uma época de estranhas contradições. Em um mundo que, cada vez mais, apregoa a igualdade racial, inclusão social, defesa de minorias e tudo mais, nunca se viu tamanha "medicalização" da angústia inerente à existência humana, o que pode, em última análise, ser visto como uma contraditória intolerância com as diferenças - se alguém saiu do padrão esperado, certamente enquadra-se em alguma doença, segundo esse raciocínio.
Crianças agitadas são descuidadamente diagnosticadas como hiperativas, perdas e frustrações se tornam justificativa para tomar antidepressivos e qualquer rompante de mau-humor é suficiente para classificar o sujeito dentro do "espectro bipolar", isso para ficar apenas na área da psiquiatria.
Naturalmente, me refiro, nos exemplos acima, à medicina mal-feita, de consultas de 10-15 minutos a cada dois meses, que só se preocupa em tratar sintomas e nunca tem tempo para compreender a complexidade do momento vivido pelo indivíduo, mas, infelizmente, é a essa medicina que a grande maioria do público tem acesso e, diante da facilidade em passar um "remedinho" como resposta a sofrimentos muitas vezes subjetivos, fica o alerta para uma perigosa tendência de pasteurização de uma sociedade cada vez menos criativa - e, naturalmente, mais angustiada.
Mas, ao contrário do que, eventualmente, possa parecer ao grande público, a Medicina não é vilã nessa história. Se o infeliz exemplo do Deprimex para resolver os problemas do Van Gogh pode ser visto como emblemático de um ponto de vista distorcido a respeito dessas excelentes ferramentas que são os psicotrópicos, deixo com os leitores um pequeno texto que escrevi em 2006 a respeito de um dos Concertos para Piano mais famosos da história, que, incidentalmente, cita como foi decisivo o papel de um médico na história do compositor.

Rachmaninov – Concerto para Piano e Orquestra no. 2
 A música na Rússia seguiu uma trajetória diversa daquela produzida no restante da Europa durante o século XIX. As formas e as diretrizes de composição no Velho Continente foram estabelecidas ainda no final do século XVII e, enquanto os mestres ocidentais expandiam as formas da música erudita – movimento iniciado por Beethoven e consolidado pelos românticos no início do século XIX – os russos ainda começavam a estruturar a sua própria escola de composição. Esse relativo atraso se justificava pelo próprio atraso político e econômico da sociedade russa, predominantemente autocrática e agrária e ainda sob grande influência da Igreja Ortodoxa. Não obstante, membros de uma elite abastada e de uma classe média incipiente perceberam que, após a vitória sobre Napoleão Bonaparte, a Rússia deveria se projetar para o mundo ocidental. Logo surgiriam os criadores de uma expressão genuinamente russa de arte que antecipariam os gigantes da segunda metade do século. Assim, Puchkin, na literatura, precedeu Dostoievski e Tolstoi, enquanto Glinka antecipou Mussorgsky e Tchaikovsky na música. No caso dessa última, houve uma importante cisão, com a escola de Mussorgsky (também conhecida como “O Grupo dos Cinco”, ou Kuchka) defendendo que uma arte genuinamente russa não deveria seguir os padrões de elaboração estabelecidos pelo ocidente e antagonizando Tchaikovsky, cujo ponto de vista era o de que o colorido eslavo deveria ser dado a formas acadêmicas de composição. Fosse de quem fosse a razão, uma escola russa de música estava estabelecida na virada do século XX, pronta para dar ao mundo uma nova safra de notáveis compositores que dominariam o cenário musical na primeira metade do século, principalmente após a Primeira Grande Guerra, como Scriabin, Rachmaninov, Stravinsky e Prokofiev.
Sergei Rachmaninov (1873-1943) foi, possivelmente, o maior pianista do século XX. Formado no renomado Conservatório de Moscou, soube captar de modo muito peculiar a tendência de ocidentalização da música russa iniciada por Tchaikovsky, mas alcançando uma estrutura formal e um equilíbrio estético raramente atingidos por aquele em seus concertos e sinfonias. Sua vida foi marcada por sucessos internacionais interrompidos por graves crises depressivas e terminada com rumores de suicídio (na verdade, o compositor morreu de câncer de pulmão, na sua mansão em Beverly Hills, pouco antes de completar setenta anos). Produziu freneticamente em alguns períodos e praticamente se retirava da vida pública em outros. Seu concerto para piano e orquestra no. 2 op. 18, um típico exemplo da produção do romantismo tardio, data de 1901 e viria a se tornar a sua obra mais conhecida. A história da produção desse concerto ilustra bem o que foi a vida do compositor: já consagrado como virtuoso do piano, ele compõe sua primeira obra de grande envergadura, a sinfonia no. 1, de 1897, que foi muito mal recebida pelo público. Acometido por grave crise depressiva, ele queima a obra e se retira da vida pública com fortes tendências suicidas. É tratado, então pelo psiquiatra Dr. Nikolai Dahl que, com a técnica de hipnose e sugestionamento, convence Rachmaninov a criar um novo concerto para piano. Animado com a nova empreitada, ele compõe o seu Segundo Concerto de maneira febril e o sucesso dessa obra inaugura um período de grande produtividade para o compositor que culminaria com o concerto para piano no. 3 e o poema sinfônico “A Ilha dos Mortos”, ambos de 1909 e feitos especialmente para uma turnê pelos EUA.
A melodia apaixonada do Segundo Concerto, marcado pelo colorido fortemente eslavo e pela virtuosidade, é contida em uma estrutura formal iniciada por Vivaldi ainda no alto barroco italiano, porém bastante expandida. O primeiro movimento, o mais complexo e desenvolvido, nos mostra uma seqüência de temas expostos de maneira rapsódica, sem o típico desenvolvimento com antagonismos de tema e contra-tema que marcaram a música erudita européia até o movimento impressionista. O solista duela com a orquestra de maneira muito virtuosística com seqüências que beiram os limites das possibilidades físicas para o pianista. O segundo movimento, cheio de lirismo, quase uma reconciliação do piano com a orquestra, nos permite perceber a típica construção melódica do compositor que, segundo vários críticos, foi o grande inspirador (alguns dizem que foi mais do que isso) das melodias dos clássicos de Hollywood. O terceiro movimento, mais leve do que o primeiro, alterna um ritmo de dança com uma nova melodia de colorido eslavo que nos leva a um finale emocionante nitidamente inspirado em Tchaikovsky.
Poucos compositores tiveram uma carreira dividida de maneira tão clara quanto Rachmaninov: após a Revolução Bolchevique de 1917, ele se mudou definitivamente para os EUA e sua produção, embora sem perder o colorido eslavo, passou a sofrer influências das harmonias do Jazz (que também influenciaria a música erudita européia, particularmente a francesa). As grandes obras desse período são a sinfonia no. 3 e o concerto para piano no. 4, ambos datados dos anos 20; embora interessantes, soaram um tanto inautênticas para muitos entusiastas e jamais repetiram o sucesso das composições anteriores, talvez os últimos estertores do movimento romântico na história das artes.

Sergei Rachmaninov

quarta-feira, 11 de julho de 2012

IN GOD WE TRUST. OTHERS, BRING DATA, PLEASE

A frase acima resume bem como o mercado, de uma maneira geral, quantifica o conhecimento e nos faz pensar sobre como a tão angustiada civilização atual espera que levemos nossas vidas, nossas escolhas e responsabilidades. Números frios a respeito de práticas e resultados podem funcionar bem em grandes corporações, mas, se tiverem sua importância e significado exagerados nas relações humanas - e na prática médica, tema deste blog -, podem colocar a perder toda a sutileza e encanto que envolve o aspecto  não-mensurável do conhecimento.
Por outro lado, a parte técnica da medicina precisa ser balizada em um sólido conhecimento sistematizado para que o profissional não caia na vala comum do "chute", do "achismo" e dos cacoetes profissionais que infestam a boa medicina, muitas vezes pela pressão sofrida pelo médico para atender cada vez mais gente em cada vez menos tempo e encher as planilhas dos burocratas com números vistosos que pouco revelam a respeito da real assistência dada a um determinado grupo.
A capacidade de equilibrar a parte técnico-científica da medicina com a sensibilidade em lidar com o lado mais frágil do ser humano - o seu sofrimento, seja ele objetivo ou não - é uma qualidade rara que tem sido, cada vez mais, objeto de estudo dos que buscam otimizar um dado simples de coletar e constatar: o índice de satisfação dos clientes.
Ter a percepção correta de como está esse equilíbrio em um universo tão restrito como a clientela de um consultório particular, como é o meu caso, é fácil; o próprio movimento do consultório é um excelente balizador do custo-benefício do atendimento oferecido. Mas, passando para as políticas de saúde pública e dos planos de saúde: quanto custa um atendimento ou procedimento médico insatisfatório? Quanto se gasta com exames desnecessários, peregrinação de pacientes por vários especialistas em consultas que pouco resolvem, dias de licença do trabalho, queda da produtividade, aparecimento de queixas crônicas, aumento do consumo de etílicos e mesmo de psicotrópicos?
A experiência pessoal mostra que a velha Medicina, praticada com calma e em harmonia com a demanda do cliente é muito mais eficiente do que a medicina de condutas padronizadas - me refiro aqui às rotinas de consultório, não a atendimentos de urgência ou de unidades de terapia intensiva -, mas, em pleno século XXI, na era da hiperinformação em tempo real, a percepção subjetiva de que tal procedimento é mais eficiente do que o outro não basta mais. Não seria hora de alguém se debruçar sobre a questão e sistematizar essa tese? Não seria a hora dos planos de saúde investirem nesse tipo de conhecimento e valorizarem os profissionais realmente resolutivos remunerando-os de forma diferenciada? Não seria a hora de abandonar números exuberantes que pouco dizem sobre a assistência à pessoa?
Aproveitando a célebre frase do "Chanceler de Ferro" Otto von Bismark a respeito de política, "Medicina não é uma ciência, como supõe a maioria dos senhores professores, mas uma arte".
Quem conseguir sistematizar essa verdade com dados convincentes pode dar um passo importante para a mudança de um modelo de assistência que conseguiu a proeza de deixar instituições (muitas das quais estão à beira da falência), médicos (que ganham pouco pelos seus procedimentos) e pacientes (que pagam caríssimo pelos seus planos de saúde) insatisfeitos, enquanto a velha figura do médico da família, referência para a decisão sobre qualquer conduta, mesmo fora da sua especialidade, virou raridade.
                                       "O Médico", de Sir Samuel Luke Fields (1891)