quinta-feira, 19 de julho de 2012

PSIQUIATRIA E ARTE

"Pode ser que você ainda não tenha se dado conta disso, mas o fato é que todas as coisas belas do mundo são filhas da doença. O homem cria a beleza como remédio para o seu medo de morrer. Pessoas que gozam de saúde perfeita não criam nada. Se dependesse delas, o mundo seria uma mesmice chata. Por que haveriam de criar? A criação é o fruto do sofrimento" - Rubem Alves

Certa vez, um determinado laboratório estava promovendo seu medicamento, ao qual vamos chamar pelo nome fictício de "Deprimex", associando-o à figura de Van Gogh. Assim, a cada mês em que eu recebia a visita do representante, vinha junto uma reprodução de alguma obra do mestre holandês ou um livro sobre sua turbulenta biografia, sempre enfatizando o diagnóstico de transtorno bipolar do qual ele padecia. Até que, um dia, o pobre representante perdeu a chance de ficar calado:

- É, doutor, se já extstisse o Deprimex naquela época, o Van Gogh teria vivido bem melhor...
- Mas não seria o grande Van Gogh que conhecemos - foi o que consegui responder.
Auto-retrato de Vincent van Gogh (1887-88)
Vivemos em uma época de estranhas contradições. Em um mundo que, cada vez mais, apregoa a igualdade racial, inclusão social, defesa de minorias e tudo mais, nunca se viu tamanha "medicalização" da angústia inerente à existência humana, o que pode, em última análise, ser visto como uma contraditória intolerância com as diferenças - se alguém saiu do padrão esperado, certamente enquadra-se em alguma doença, segundo esse raciocínio.
Crianças agitadas são descuidadamente diagnosticadas como hiperativas, perdas e frustrações se tornam justificativa para tomar antidepressivos e qualquer rompante de mau-humor é suficiente para classificar o sujeito dentro do "espectro bipolar", isso para ficar apenas na área da psiquiatria.
Naturalmente, me refiro, nos exemplos acima, à medicina mal-feita, de consultas de 10-15 minutos a cada dois meses, que só se preocupa em tratar sintomas e nunca tem tempo para compreender a complexidade do momento vivido pelo indivíduo, mas, infelizmente, é a essa medicina que a grande maioria do público tem acesso e, diante da facilidade em passar um "remedinho" como resposta a sofrimentos muitas vezes subjetivos, fica o alerta para uma perigosa tendência de pasteurização de uma sociedade cada vez menos criativa - e, naturalmente, mais angustiada.
Mas, ao contrário do que, eventualmente, possa parecer ao grande público, a Medicina não é vilã nessa história. Se o infeliz exemplo do Deprimex para resolver os problemas do Van Gogh pode ser visto como emblemático de um ponto de vista distorcido a respeito dessas excelentes ferramentas que são os psicotrópicos, deixo com os leitores um pequeno texto que escrevi em 2006 a respeito de um dos Concertos para Piano mais famosos da história, que, incidentalmente, cita como foi decisivo o papel de um médico na história do compositor.

Rachmaninov – Concerto para Piano e Orquestra no. 2
 A música na Rússia seguiu uma trajetória diversa daquela produzida no restante da Europa durante o século XIX. As formas e as diretrizes de composição no Velho Continente foram estabelecidas ainda no final do século XVII e, enquanto os mestres ocidentais expandiam as formas da música erudita – movimento iniciado por Beethoven e consolidado pelos românticos no início do século XIX – os russos ainda começavam a estruturar a sua própria escola de composição. Esse relativo atraso se justificava pelo próprio atraso político e econômico da sociedade russa, predominantemente autocrática e agrária e ainda sob grande influência da Igreja Ortodoxa. Não obstante, membros de uma elite abastada e de uma classe média incipiente perceberam que, após a vitória sobre Napoleão Bonaparte, a Rússia deveria se projetar para o mundo ocidental. Logo surgiriam os criadores de uma expressão genuinamente russa de arte que antecipariam os gigantes da segunda metade do século. Assim, Puchkin, na literatura, precedeu Dostoievski e Tolstoi, enquanto Glinka antecipou Mussorgsky e Tchaikovsky na música. No caso dessa última, houve uma importante cisão, com a escola de Mussorgsky (também conhecida como “O Grupo dos Cinco”, ou Kuchka) defendendo que uma arte genuinamente russa não deveria seguir os padrões de elaboração estabelecidos pelo ocidente e antagonizando Tchaikovsky, cujo ponto de vista era o de que o colorido eslavo deveria ser dado a formas acadêmicas de composição. Fosse de quem fosse a razão, uma escola russa de música estava estabelecida na virada do século XX, pronta para dar ao mundo uma nova safra de notáveis compositores que dominariam o cenário musical na primeira metade do século, principalmente após a Primeira Grande Guerra, como Scriabin, Rachmaninov, Stravinsky e Prokofiev.
Sergei Rachmaninov (1873-1943) foi, possivelmente, o maior pianista do século XX. Formado no renomado Conservatório de Moscou, soube captar de modo muito peculiar a tendência de ocidentalização da música russa iniciada por Tchaikovsky, mas alcançando uma estrutura formal e um equilíbrio estético raramente atingidos por aquele em seus concertos e sinfonias. Sua vida foi marcada por sucessos internacionais interrompidos por graves crises depressivas e terminada com rumores de suicídio (na verdade, o compositor morreu de câncer de pulmão, na sua mansão em Beverly Hills, pouco antes de completar setenta anos). Produziu freneticamente em alguns períodos e praticamente se retirava da vida pública em outros. Seu concerto para piano e orquestra no. 2 op. 18, um típico exemplo da produção do romantismo tardio, data de 1901 e viria a se tornar a sua obra mais conhecida. A história da produção desse concerto ilustra bem o que foi a vida do compositor: já consagrado como virtuoso do piano, ele compõe sua primeira obra de grande envergadura, a sinfonia no. 1, de 1897, que foi muito mal recebida pelo público. Acometido por grave crise depressiva, ele queima a obra e se retira da vida pública com fortes tendências suicidas. É tratado, então pelo psiquiatra Dr. Nikolai Dahl que, com a técnica de hipnose e sugestionamento, convence Rachmaninov a criar um novo concerto para piano. Animado com a nova empreitada, ele compõe o seu Segundo Concerto de maneira febril e o sucesso dessa obra inaugura um período de grande produtividade para o compositor que culminaria com o concerto para piano no. 3 e o poema sinfônico “A Ilha dos Mortos”, ambos de 1909 e feitos especialmente para uma turnê pelos EUA.
A melodia apaixonada do Segundo Concerto, marcado pelo colorido fortemente eslavo e pela virtuosidade, é contida em uma estrutura formal iniciada por Vivaldi ainda no alto barroco italiano, porém bastante expandida. O primeiro movimento, o mais complexo e desenvolvido, nos mostra uma seqüência de temas expostos de maneira rapsódica, sem o típico desenvolvimento com antagonismos de tema e contra-tema que marcaram a música erudita européia até o movimento impressionista. O solista duela com a orquestra de maneira muito virtuosística com seqüências que beiram os limites das possibilidades físicas para o pianista. O segundo movimento, cheio de lirismo, quase uma reconciliação do piano com a orquestra, nos permite perceber a típica construção melódica do compositor que, segundo vários críticos, foi o grande inspirador (alguns dizem que foi mais do que isso) das melodias dos clássicos de Hollywood. O terceiro movimento, mais leve do que o primeiro, alterna um ritmo de dança com uma nova melodia de colorido eslavo que nos leva a um finale emocionante nitidamente inspirado em Tchaikovsky.
Poucos compositores tiveram uma carreira dividida de maneira tão clara quanto Rachmaninov: após a Revolução Bolchevique de 1917, ele se mudou definitivamente para os EUA e sua produção, embora sem perder o colorido eslavo, passou a sofrer influências das harmonias do Jazz (que também influenciaria a música erudita européia, particularmente a francesa). As grandes obras desse período são a sinfonia no. 3 e o concerto para piano no. 4, ambos datados dos anos 20; embora interessantes, soaram um tanto inautênticas para muitos entusiastas e jamais repetiram o sucesso das composições anteriores, talvez os últimos estertores do movimento romântico na história das artes.

Sergei Rachmaninov

3 comentários:

Waleska disse...

Belíssimo texto, muito bem escrito. Parabéns, primo! Grande abraço pra você e sua família linda!

Luís Augusto disse...

Obrigado, prima!

Rodrigo Dias Malta disse...

Mandou bem! Mais uma vez. Muito bom o exemplo da arte e a ilustração da sociedade.