quarta-feira, 12 de setembro de 2012

FÁBRICAS DE DIPLOMAS

Quem tem hoje menos de 25 anos, talvez não faça idéia da dimensão do significado do vestibular no imaginário dos jovens há 15 ou 20 anos. Em meio à explosão hormonal, iniciação sexual, primeiros porres, aproximação da sonhada licença para dirigir e tantos outros estímulos que acabam de moldar a nossa personalidade, havia o temido "funil" do vestibular, que determinaria se (e não em que faculdade) teríamos ou não a profissião dos sonhos. Ser ou não bem-sucedido no vestibular era visto como determinante para o futuro profissional dos jovens de então, em uma época de inflação galopante, explosão da violência urbana e enormes incertezas sobre o futuro (a propósito, a única certeza que permanece imutável é a de que o Brasil é o país do futuro...).
Mesmo nos dias atuais, apesar deste ritual de passagem ter ficado um tanto banalizado pelo aumento exponencial de vagas em faculdades, a vida universitária continua a exercer seu fascínio e, foi com este pano de fundo que, em 2003, fui dar aula em uma tradicional universidade privada no interior de MG. Como o questionamento dos alunos era freqüente sobre qual era a utilidade prática, para a carreira deles, da matéria que eu lecionava, um dia parei a aula para refletirmos juntos sobre a vida acadêmica, começando com a seguinte pergunta, que acabou se tornando o tema das aulas inaugurais de todas as minhas turmas:

"- O que vocês acham que estão fazendo aqui na Universidade?"

Nesta e nas outras duas faculdades em que tive a oportunidade de lecionar, a totalidade das respostas foram variações sobre "aprender uma profissão". Não chega a ser uma resposta incorreta, mas certamente, incompleta.
Basicamente, uma profissão ou ofício se aprende vendo os outros a praticarem - se possível, sob supervisão. Sapateiros, artistas, cirurgiões, bancários, padeiros, engenheiros, pedreiros, atletas, funcionários públicos, pesquisadores, psiquiatras... enfim, toda a sorte de profissionais que pudermos imaginar, parte de um modelo pré-estabelecido e vai imitando-o e aprimorando sua técnica até se transformar em um profissional de excelência. Fatores que corroboram o raciocínio acima são a freqüente observação de que os alunos saem "crus" das universidades e a enorme frustração dos recém-formados quando se deparam com a dura realidade da vida "real", na qual vão encarar (ou não) a profissão que escolheram em um ambiente completamente estranho ao mundo acadêmico.
Se fosse verdade que os alunos estão na faculdade apenas para aprender uma profissão, não poderia haver um enxugamento da grade curricular com enfoque em disciplinas mais objetivas que preparem melhor o aluno para enfrentar a realidade com a qual irão se deparar após a formatura?
Tentador, não?
Certamente. Mas o que, infelizmente, a imensa maioria dos acadêmicos não percebe, é que, muito mais do que habilitar o aluno para um ofício, a carreira universitária existe (ou deveria existir) para que a pessoa aprenda a pensar. O domínio da técnica da profissão escolhida vem por conseqüência. Não creio que exista um modelo ideal de ensino superior nem sou letrado no assunto, mas olhemos para dois exemplos de exuberância em desenvolvimento econômico, científico e tecnológico da civilização ocidental, os EUA e a Alemanha.
No primeiro, o aluno faz cerca de dois anos de uma espécie de "ciclo básico" na universidade escolhida para só depois determinar qual carreira irá seguir. Diferentemente do que ocorre no Brasil, com currículos engessados e previsíveis, cujo ciclo básico acaba sendo visto pela maioria como "aquele monte de matérias inúteis", nos EUA os alunos têm liberdade para estudar história, arte, filosofia e sociologia junto com bioquímica, cálculo ou fundamentos do direito, à sua escolha. Enfim, por lá, no ciclo básico de dois anos ou mais, o aluno se dedica a expandir seus horizontes.
Na Alemanha, ainda na escola, o aluno, dependendo do seu desempenho, já vai sendo direcionado para a carreira universitária (Realschule) ou para os cursos técnicos (Hauptschule), já se acostumando, no caso dos alunos da Realschule, ao pensamento acadêmico antes mesmo de entrar em uma das conceituadíssimas universidades alemãs. Caracteristicamente, a cultura alemã valoriza muito os profissionais de nível técnico e não há o sentimento de inferioridade no aluno direcionado para a Hauptschule.
Em ambos os casos, mais do que formar profissionais, as universidades se dedicam a formar pensadores.
 
Como dito acima, não há aqui nenhuma defesa de um modelo ideal de ensino, mas, comparando os exemplos acima com o que se vê no Brasil, fica fácil perceber que algo está errado com o nosso ensino superior, cada vez mais voltado para facilitar o caminho do aluno em direção a diplomas e habilitações que pouco acrescentam nas suas vidas - são, basicamente, autorizações para exercer determinado ofício. Enquanto houver enfoque em "aprender uma profissão" - que, como dito acima, acaba sendo aprendida de uma forma ou de outra, independentemente do conhecimento formal -, estaremos cada vez mais longe da vocação estabelecida com a criação da Universidade de Bolonha em 1088: formar uma elite intelectual que garanta o futuro da nação.
No caso específico das faculdades de Medicina, devido ao alto custo - financeiro e emocional - do curso, corre-se o risco da frustração dos egressos ser ainda maior.
 
Brasão da Universitá di Bologna, considerada a primeira Universidade moderna do mundo ocidental. Confrontado com o propósito da sua criação, o ensino superior no Brasil parece piada.