segunda-feira, 3 de abril de 2017

O CICLO VICIOSO DE CULPA E CONCESSÕES

Abaixo, mais um texto feito para as leitoras do Padecendo no Paraíso, complementando o artigo publicado na semana anterior.

O ciclo vicioso de culpa e concessões

Na semana passada, publicamos aqui um texto sobre as origens químicas da depressão e algumas orientações básicas para lidar com quem sofre desse mal. A repercussão fez com que nascesse uma síntese sobre as origens psicodinâmicas – ou comportamentais – do humor deprimido, que divido aqui com vocês.


De uma maneira bem sintética, podemos dizer que TODOS            os nossos relacionamentos estão baseados em um sistema de concessões. O exemplo mais claro é o da contratação de um serviço: você paga um determinado valor para um determinado profissional executar um trabalho (uma concessão, portanto) e, a partir de então, cria uma expectativa sobre o resultado daquele trabalho diante do dinheiro que pagou. Nos relacionamentos familiares, pessoais, conjugais e de trabalho, ocorre algo semelhante, porém sem o envolvimento de um valor tão absoluto como o do dinheiro. Para ficar em alguns exemplos, subordinados fazem concessões ao chefe visando uma promoção, maridos fazem concessões a esposas esperando satisfação de algum capricho sexual, filhos fazem programas chatos com os pais esperando alguma forma de recompensa, pais investem nos filhos esperando algum retorno ou reconhecimento. Enfim, qualquer que seja a base da relação, sempre haverá alguma forma de concessão que trará consigo alguma expectativa de um retorno à altura.
Entretanto, raramente isso acontece.
No verdadeiro tsunami de obrigações e compromissos que a sociedade ocidental se impôs, raramente alguém acha que está tendo um retorno adequado da concessão que está investindo. Maridos, esposas, pais, mães, filhos e amigos reclamam de esposas, maridos, filhos, pais, mães e amigos ingratos ou incompreensivos de uma maneira muito mais freqüente do que inicialmente seria de se esperar, diante da série de coisas que têm que “ceder” ao longo de um relacionamento.
A não correspondência de uma concessão feita, portanto, gera uma enorme frustração.




Todos nós passamos por frustrações. Elas são, principalmente para as crianças, importantíssimas para a formação da personalidade. Graças a elas, aprendemos a lidar com limites e com impossibilidades ao longo da vida. Um bem que não pode ser adquirido, um amor não correspondido, uma nota ruim na prova, uns quilinhos a mais na balança, são exemplos de como vamos aprendendo que nem tudo é possível o tempo todo. O sentimento que essas frustrações despertam é o que nos leva a querer empreender, estudar mais, acordar mais cedo, malhar, comer melhor. Mas quando a frustração é freqüente dentro de um determinado relacionamento, quando passamos semanas, meses, ou mesmo anos, experimentando uma expectativa que não é correspondida, começa a crescer um sentimento perigoso em nosso psiquismo chamado ira. Ou raiva, fúria, ódio, como quiserem.

Mas aprendemos desde cedo que não é bom cultivar esses sentimentos, certo?

Então, nosso psiquismo, num instinto de sobrevivência moldado pela nossa cultura, transforma a maior parte dessa ira em duas coisas: recalque e culpa.

Usando um conceito de engenharia, recalque é o esmagamento do solo lá embaixo, na fundação, que traz reflexos na parte visível da construção (o exemplo mais famoso é a Torre de Pisa, que ficou torta por causa de um recalque). Traduzindo para a psicodinâmica, é a tentativa de enterrar e esmagar nossos conflitos não resolvidos que acaba tendo reflexos no nosso comportamento - quem nunca chamou uma pessoa complicada de “recalcada”?

Entretanto, na maior parte das pessoas, a maior parcela da ira gerada pelas frustrações diante das concessões não correspondidas, se transforma mesmo em culpa, um sentimento muito mais aceitável pela nossa cultura do que a raiva ou o ódio. O problema, é que, para aliviar esse sentimento impreciso de culpa gerado pelas frustrações, somos levados a fazer novas – e cada vez maiores – concessões, alimentando um ciclo vicioso que muitas vezes gera um sentimento de incompreensão e desamparo, mesmo quando tudo ao redor parece em ordem. Como dito antes, isso ocorre em qualquer esfera de relacionamento, mas, na vida conjugal, onde a via de mão dupla de concessões tende a ser mais intensa, a situação pode ficar crítica, principalmente se houver um desequilíbrio de poder na relação. Romper esse ciclo de concessões – frustrações – ira – culpa – novas concessões é ferramenta fundamental para não desenvolver ou cronificar um quadro depressivo. Ajudar quem caiu nessa armadilha a superar o desafio de se libertar é uma das principais tarefas do psicoterapeuta.




quarta-feira, 22 de março de 2017

CONSIDERAÇÕES SOBRE DEPRESSÃO

A pedido da Bebel Soares, editora do Padecendo no Paraíso, escrevi o texto abaixo, direcionado ao público leigo, publicado em 20/3/17 com ótima repercussão entre as leitoras


COMO LIDAR COM UMA PESSOA DEPRIMIDA

“Eu não consigo explicar meus sentimentos para você; existe um certo vazio que me causa dor, um desejo nunca satisfeito e que, no entanto, nunca cessa, mas aumenta dia após dia... Eu tampouco encontro alegria no meu trabalho... Se eu sento ao piano e canto algo da minha ópera, tenho que parar imediatamente, pois me afeta muito.”
Carta de Wolfgang Amadeus Mozart à esposa, julho de 1791

“Acordei a noite toda ontem de novo. Às vezes, eu penso para que serve a noite. Ela quase não existe para mim – tudo parece um longo, longo e horrível dia”
Carta de Marilyn Monroe ao seu psiquiatra, agosto de 1961

Os dois relatos históricos acima, registrados por duas figuras tão associadas à beleza e à magia das artes, dão a dimensão da devastação causada por uma doença pouco compreendida e ainda cercada de preconceitos e banalizações: o transtorno depressivo. Nos próximos parágrafos, vamos tentar esclarecer alguns pontos sobre o sofrimento de quem tem depressão e derrubar alguns mitos que, infelizmente, ainda a cercam.

Serem humanos se alegram e se entristecem o tempo todo, na maioria das vezes com uma conexão bastante clara com o ambiente que os cerca. Pessoas apaixonadas, que receberam uma promoção no trabalho, que compraram uma casa nova ou que viram o nascimento de um filho tendem a se sentir muito alegres, enquanto quem está com dívidas, crise no relacionamento ou tem problemas com os filhos tendem a se sentir mais tristes ou irritadas do que o normal. Tais fenômenos são perfeitamente compreensíveis e muito necessários para o nosso aprendizado – de um modo geral, vamos querer repetir as experiências que nos deixaram alegres e evitar as que nos deixaram tristes.

Entretanto, nosso humor também varia sem uma conexão clara com os estímulos ambientais. Não chega a ser raro estarmos incompreensivelmente alegres (“fulano viu um passarinho verde hoje”) ou chateados (“sicrano acordou com o pé esquerdo hoje”). Essas oscilações do humor, dentro de uma determinada faixa de normalidade, é o ciclo habitual do nosso psiquismo e um dos determinantes das características da personalidade das pessoas (expansiva, introspectiva, debochada, melancólica, etc). A nossa percepção das variações de humor se deve a oscilações na produção de substâncias no nosso cérebro - as monoaminas.

Até aqui, falamos de situações normais e de características encontradas em qualquer pessoa, de maneira mais ou menos evidente aos olhos de um psiquiatra. Quando essas oscilações do humor se tornam exageradas (alegria, coragem ou irritação desproporcionais ao estímulo ambiental ou tristeza, melancolia e sensação de ruína também sem uma justificativa compreensível), temos um quadro denominado Transtorno Bipolar, tema para um futuro artigo para as Padecentes.

Entretanto, quando o humor fica permanentemente triste, quando a pessoa vai perdendo o prazer e o interesse por coisas que anteriormente achava divertidas, e, principalmente, quando ela se fecha em um universo de dor e falta de esperança, é hora de olhar com atenção se não é o caso de se pensar em depressão.

Em linhas gerais, a depressão é causada pela deficiência da produção de substâncias no nosso sistema nervoso chamadas monoaminas. Dessas, as mais conhecidas são a serotonina e noradrenalina, cuja falta determina a falta de alegria, prazer e energia tão característicos de quem sofre de depressão. Lavar uma pia de louças, arrumar uma pilha de papéis ou mesmo dar uma volta no quarteirão com o cachorro se tornam tarefas extremamente penosas e sem sentido para quem tem a produção das monoaminas reduzida. Essa redução é determinada geneticamente e, dependendo da carga genética, pode aparecer em qualquer época da vida, não necessariamente relacionada a algum evento traumático, embora um evento traumático possa desencadear ou mesmo agravar um quadro depressivo que, sem esse trauma, talvez não ocorresse ou ocorresse de maneira bem mais branda. Ainda há de se considerar que é a carga genética uma das grandes responsáveis pela maneira tão diferente que as pessoas reagem a um trauma. Uma perda de emprego ou o fim de um relacionamento, por exemplo, podem ser um gatilho importante para a baixa permanente dessas monoaminas em quem tem predisposição genética, enquanto determinam apenas uma alteração efêmera do humor em quem não tem essa predisposição e que, após alguns dias, se recupera e segue sua vida normalmente. É importante frisar aqui que não se trata de “fraqueza de personalidade” ou “falta de vergonha” quando alguém que sofre de depressão não consegue lidar com a adversidade. Pedir para um deprimido reagir como uma pessoa normal (ou “eutímica”, como se diz em psiquiatria) a um problema que o aflige, é como pedir a um daltônico que diferencie certas cores ou que um diabético controle sua glicose com base na força de vontade.

Os antidepressivos, de um modo geral, atuam buscando a otimização da produção dessas monoaminas.

Esclarecidas as origens da depressão, passamos à questão mais importante: como lidar com uma pessoa deprimida? E quando os deprimidos somos nós mesmos, o que fazer?
A primeira e mais absoluta das regras é tão obvia que acaba sendo esquecida: 

NÃO JULGAR A SITUAÇÃO SOB O PONTO DE VISTA DE QUEM NÃO É DEPRIMIDO. 

É extremamente comum ouvir relatos do tipo “mas você é uma pessoa tão bonita” ou “não te falta nada” ou “olhe para sua família” ou “tenha mais fé” ou, o pior de todos “você precisa reagir”. Todas essas tentativas de ajudar só pioram a sensação de isolamento e incompreensão que atormenta quem sofre de depressão, além de reforçaram a sensação de incompetência e inadequação que acompanha essas pessoas.
A segunda regra, também de ouro é: 

OUÇA E ACOLHA O SOFRIMENTO DE QUEM PEDE SOCORRO. 

Admitir que está deprimido, principalmente para quem está enfrentando a doença pela primeira vez, é dificílimo, pois não há um exame laboratorial ou qualquer outro parâmetro, além da própria percepção de que não está bem. Muitas vezes, apenas dividir o sofrimento com alguém, já é enorme alivio para quem sente o desamparo que a depressão causa. Não se preocupe em apresentar uma solução ou um caminho! Como diz a música “Sutilmente”, do Skank, “... E quando eu estiver triste, simplesmente me abrace”.
A terceira regra, que determinará como (e se) a pessoa vai sair de um episódio depressivo, é:

NÃO BANALIZAR O TRATAMENTO. 

Os antidepressivos foram, até os anos 80, drogas de difícil manejo por causa dos efeitos colaterais. Com a descoberta da fluoxetina e dos outros antidepressivos serotoninérgicos (paroxetina, sertralina, citalopram, escitalopram, fluvoxamina), a prescrição dessas drogas passou a ser feita sem muito critério, muitas vezes em “consultas de corredor” ou até mesmo por amigos e parentes que, na tentativa de ajudar, passam antidepressivos de maneira pouco cuidadosa, sem uma compreensão mais profunda do sofrimento de quem precisa de ajuda, tendendo a cronificar o problema e a jogar fora uma ótima ferramenta de tratamento.
A quarta e última regra é:

SABER QUE RECAÍDAS OCORRERÃO AO LONGO DA VIDA DO DEPRIMIDO. São comuns os casos em que a pessoa cumpre um protocolo de tratamento com antidepressivo (entre seis e oito meses de remissão dos sintomas), retira a medicação e ganha alta do psiquiatra, ficando o retorno em aberto para quando precisar. Esse retorno pode ocorrer depois de alguns meses ou depois de vários anos, mas não é raro a pessoa precisar de um novo ciclo de tratamento com antidepressivos para encarar uma eventual recaída.


Então, compreendidas as regras básicas de como lidar com uma pessoa em episódio depressivo, falta falar sobre como prevenir e enfrentar as turbulências que, naturalmente, virão. Buscar situações prazerosas, valorizar o que realmente importa na vida, não se prender em relacionamentos doentios, tanto na vida afetiva quanto na vida profissional e familiar, ter planos, defender idéias, criar, realizar... sim, isso é possível para quem sofre de depressão e busca tratamento! Além da parte química, com antidepressivos sempre que necessários, uma boa psicoterapia pode ajudar muito a enfrentar uma das mais terríveis formas de sofrimento de que temos conhecimento. Procure um profissional bem recomendado sempre que achar necessário.