terça-feira, 26 de junho de 2012

AINDA SOBRE VINHOS E CLIENTES

Desde o desastroso episódio de 2005, posso dizer que meu conhecimento sobre vinhos melhorou exponencialmente. Não me tornei nenhum erudito no assunto, mas o mergulho na história da mais charmosa das bebidas me trouxe uma bela bagagem cultural que, volta e meia, é usada na lida diária. E, de todas as regiões vinicultoras do mundo, uma exerce fascínio especial pela sua história e pelos seus vinhos únicos: a Campanha francesa.
Situada na região fronteiriça da França com a Bélgica, a Champagne, como dizem os franceses carrega consigo um paradoxo: seus vinhos são sempre associados a celebrações e momentos de júbilo, mas a região é uma das que têm a história mais turbulenta da Europa, tendo sido vítima de frequentes saques, invasões e banhos de sangue desde a Antiguidade. Quando não eram as guerras, eram as pragas e o clima desfavorável que arruinavam as safras; o solo da região era outro obstáculo, pois era pobre para o cultivo das vinhas, que tinham que ser colhidas prematuramente e terminavam de fermentar nas garrafas, originando o gás da bebida. Este, por sua vez, fez com que muitas garrafas estourassem na cara ou nas mãos dos vinicultores, cegando-os ou aleijando-os irremediavelmente, problema que só foi superado com o aperfeiçoamento da técnica de fabricação do vidro.
Tantos revezes e tanta superação acabaram por moldar o caráter altivo dos champenois, de modo que, quando a I Guerra começou, em 1914 - que, por um capricho do destino, foi ano de uma safra espetacular - e todo o poderio militar alemão caiu sobre a França, os chefes de adega, sabendo o significado do vinho que produziam, profetizaram, contra todas as probabilidades:
- "Esta será a safra da Vitória!"
Foram quatro anos de horror, bombas de poderio nunca visto, gases tóxicos, destruição de vilas inteiras, massacre da população civil e perda de mais de um milhão de vidas só do lado francês.
Até que, em 1918, com o término das hostilidades, as garrafas de 1914 foram abertas. E estavam, como previram seus produtores, realmente dignas de celebrar a vitória sobre a Alemanha que, muito emblematicamente, assinou o armistício na Champagne.
Toda essa história serve para ilustrar como, muitas vezes, até a mais desesperadora das situações e até a pior seqüência de reveses merece empenho e esperança. Débâcles financeiras, casamentos despedaçados, filhos problemáticos, doenças graves e perdas repentinas de entes queridos costumam desencadear crises nervosas que acabam levando pessoas até então sadias a um consultório psiquiátrico. Pessoas que não precisam de um diagnóstico sofisticado ou de um tratamento médico formal, precisam apenas de histórias inspiradoras que lhes permitam reunir forças para superar os problemas que as levaram a buscar ajuda. A maneira com que contamos essas histórias pode mudar o curso da História das pessoas e fazer com que chegue o dia da Vitória. E, quando isso acontece, quase sempre, uma garrafa do mais refinado vinho de Champagne em ótima companhia é a melhor prescrição.

terça-feira, 19 de junho de 2012

BLOOPERS

Pretensioso o primeiro post, não? Pena que nem sempre as coisas corram assim...
Em um consultório médico, cada novo paciente que chega é um universo inédito para explorarmos. E, diante de tamanha exigência, é natural que, nem sempre, a gente se saia tão bem como gostaria. Esta história ocorreu no final de 2005 e ilustra bem o efeito de uma "bola fora".
Desde que me casei e me vi, do dia para a noite, independente da rotina da casa dos meus pais, me interessei bastante pelo universo dos vinhos. Gostava de acompanhar as colunas de um conhecido enólogo (que, com o tempo, percebi ser meio picaretão e impreciso em suas opiniões) que, certa vez, falou que a qualidade dos vinhos da Borgonha importados ultimamente havia melhorado muito. Naquela época, eu sabia que a Borgonha era uma região vinicultora da França, mas não fazia idéia de que era a grande rival de Bordeaux como a melhor produtora de vinhos do mundo! Só para ficar no exemplo mais famoso, o caríssimo e exclusivo Romanée-Conti é feito em Bourgogne, como dizem os franceses. Enfim, uma discussão entre vinhos de Bourgogne e de Bourdeaux na França é algo como discutir Atlético x Cruzeiro em Belo Horizonte ou EUA x URSS no auge da guerra fria ou, ainda, Maverick GT x Charger R/T entre os antigomobilistas. E os borgonheses, naturalmente, não têm a menor dúvida de que seu vinho é, de fato, o melhor do mundo.
Foi com esse pano de fundo que atendi, no final de 2005, um jovem e distinto senhor estrangeiro, que chegou muito bem recomendado ao meu consultório. Seu problema era relativamente grave a demandava atenção. Após alguma formalidade, ele se apresentou como francês da Borgonha e comerciante de vinhos... e a pérola do dia saiu da minha boca:

- Ah, o senhor é da Borgonha... soube que os vinhos de lá têm melhorado muito...

Alguém consegue imaginar um efeito mais catastrófico? Se alguém falasse para um torcedor argentino que Maradona foi um jogador "até razoável" ou para um dos Tifosi italianos que a Ferrari faz esportivos "legaizinhos", não faria um estrago tão grande. Pode ser fantasia minha, mas lembro de ter a impressão de que o francês fez menção de se levantar e ir embora. Dali em diante, nada do que eu dissesse poderia salvar o dia. Lembro que percebi a mancada e me esforcei para me concentrar no problema que o levara ao meu consultório, mas o destino daquela relação médico-paciente já havia sido selado: obviamente, ele nunca mais voltou e nunca mais tive notícias dele.
Foi apenas seis anos depois, no final de 2011, que tive a oportunidade de me redimir, se bem que bem longe do consultório, com o povo Borgonhês.
Em 2010, comprei uma Kombi 1974 de um amigo, que a comprara havia pouco tempo do seu primeiro dono, mas decidira passá-la adiante. A Kombi era (é) inacreditavelmente conservada e trazia a particularidade de ter sido transformada artesanalmente em um engenhoso motor-home pelo seu primeiro proprietário, que só a vendeu porque foi vítima de um AVC que lhe trouxe limitações físicas que o impossibilitaram de dirigir. Algum tempo depois de comprar a Kombi, fiz questão de conhecer o Sr. Paul Auriol, um francês octogenário radicado no Brasil desde os anos 70 e responsável pela conservação ímpar do carro  após 37 anos de uso. Apesar das limitações impostas pela seqüela do AVC, pude notar seu sorriso quando ele disse que era de Dijon e eu repliquei que sua região (Bourgogne) produz alguns dos melhores vinhos do mundo e que gostaria muito de conhecê-la um dia. Um prêmio de consolação para um bad day at office de seis anos antes. 

domingo, 17 de junho de 2012

PSIQUIATRA É MÉDICO?

Trata-se de uma pergunta bem mais freqüente do que se imagina, muitas vezes embaraçosa, dependendo do enfoque que é preciso dar para cada caso. O que se vê é que, até mesmo em função do pouco uso do conhecimento da medicina mais generalista, o especialista acaba se afastando de condutas que são rotineiras até mesmo para um estudante dos últimos anos, mas a essência da prática médica e o raciocínio clínico não o abandonam e muitas vezes o surpreendem. Talvez por isso, eu me apresente como Médico Psiquiatra, não apenas como Psiquiatra. O caso de hoje ilustra bem a questão.
Há pouco mais de três anos, uma paciente, a quem vamos chamar de Amanda, me procurou a pedido de uma amiga, que já era minha cliente. Ela não sabia exatamente a razão de ter marcado comigo, dizendo apenas que tinha uma sensação subjetiva de não estar se sentindo bem. Já havia passado em alguns  médicos (um clínico, um ortopedista e na sua ginecologista) que não observaram nada de errado com ela. 
Aqui, cabe uma pausa para descrever Amanda. Tinha 37 anos, era casada, mãe de dois filhos pequenos. De origem humilde, conseguiu fazer curso superior e, ao lado do marido, era uma empresária muito bem sucedida, estando em franca ascensão econômica e social. Começava a se envolver com o mundo dos vinhos sofisticados e da alta costura, mas sem afetações. Não tinha queixas da vida. Alta, esguia e dona de um belo par de olhos azuis, era difícil entender seu ponto de vista de que algo não parecia estar bem.
"Uma somatizadora", foi a primeira idéia (somatizador, basicamente, é o paciente que transforma conflitos psíquicos em sintomas físicos nem sempre justificáveis por exames clínicos objetivos), mas seu discurso, sua postura diante dos problemas que eu colocava para pensarmos, não corroboravam essa hipótese que, mesmo assim, ficou pairando em meu imaginário por algum tempo. Enfim, ao final da primeira consulta, eu lhe disse que não fazia idéia do que estava errado com ela, mas lhe convidei a marcar um novo horário e ela aceitou, completando que talvez a resposta estivesse em uma psicoterapia. 
E assim foi. 
No decorrer das quatro ou cinco consultas subsequentes, em um intervalo de cerca de dois meses, ela relatava uma sensação subjetiva de melhora; trabalhava e cuidava da família normalmente, coisa que, aliás, nunca deixara de fazer. Não havia qualquer sinal de depressão. Faltava, no entanto, alguma consistência que eu não conseguia captar, até que ela descreveu uma cena interessante.
Em um dia qualquer, Amanda percebeu que estava evitando brincar com os filhos assentada no chão por causa de uma dor lombar que não melhorava e, muitas vezes, se agudizava a ponto de obrigá-la interromper o que estivesse fazendo. Disse isso de maneira absolutamente casual, pois não entendia essa dor como um sintoma digno de ser relatado, atribuindo-a ao sedentarismo ou a um colchão inadequado; mas, na consulta subseqüente, a dor lombar ganhou importância. Em outra ocasião, começamos a falar de família e filhos. Ela considerava que sua família já estava completa e que tentava convencer o marido a fazer vasectomia.
"- E como vocês estão evitando filhos?" - perguntei.
"- Tentei usar o Mirena, mas não me adaptei por causa de hemorragias. Me adaptei melhor ao Implanon."
Tanto o Mirena quanto o Implanon são estruturas introduzidas no corpo da mulher (o Mirena é um tipo de DIU e o Implanon é um pequeno bastão subcutâneo) que liberam hormônios sintéticos semelhantes à progesterona para evitar a gravidez.
A charada estava morta!
Passamos a nos concentrar na dor lombar e,quando eu lhe perguntei se ela havia sentido algo semelhante nas gestações, ela deu um pulo da cadeira:
- A dor é idêntica!
- E essa sensação subjetiva de desânimo e de que algo está errado? - arrisquei.
- Também!
Expliquei para a Amanda que, do ponto de vista funcional do organismo, ela estava grávida, já que a liberação contínua de progesterona é exatamente o que ocorre na gestação; só não havia o feto. A progesterona pode provocar indisposição nas mulheres e relaxamento dos ligamentos próximos ao quadril para aumentar o espaço para o útero crescer; esse afrouxamento pode provocar até dores incapacitantes em algumas grávidas.
A solução para o problema da Amanda, obviamente, não estava mais em um consultório psiquiátrico; orientada a retirar o Implanon, ela enfrentou alguma resistência da sua ginecologista, mas, menos de uma semana depois de ser ver livre da progesterona sintética, as dores e o desânimo desapareceram completamente.
Amanda teve alta da psiquiatria depois de cerca de três meses desde a sua primeira consulta, sendo que o conhecimento psiquiátrico aqui foi o de menor importância.
Esse raciocínio descrito acima não tem nada de espetacular. Trata-se do be-a-bá da rotina de qualquer estudante do quinto ano quando todos os dados estão à mão. O problema é que, muitas vezes, não estão, e o trabalho do médico é o de montar um quebra-cabeça que parece sem todas as peças. O cliente, que não tem a menor obrigação de saber quais peças são mais importantes, vai fornecendo ao profissional atento as pistas para desvendar o problema, mas a pressa, o preconceito e a necessidade de "enquadrar" o paciente em um raciocínio pré-estabelecido (imagine o tamanho do prejuízo se ela fosse tratada como "somatizadora") podem fazer com que essas peças se percam para sempre.
Parafraseando uma frase batida, o especialista pode até se afastar da medicina geral, mas a Medicina nunca se afasta do bom especialista. E a essência da boa Medicina ainda está em entender o universo do paciente em toda a sua complexidade; a solução para certas questões pode ser bem mais simples do que se imagina.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

APRESENTAÇÃO

A idéia de deixar registrada alguma coisa sobre a minha atividade cotidiana - a medicina praticada em consultório particular - surgiu da demanda dos próprios clientes. Muitas vezes recorro, em minhas intervenções, a citações e exemplos quase nunca encontrados em livros técnicos ou manuais de diagnóstico e tratamento. E não é raro que a intervenção venha seguida de alguma observação do tipo "você deveria escrever sobre isso!"
Comecei minha carreira de médico no início de 2001 e terminei a residência em psiquiatria no final de 2002 - já são quase dez anos lidando com uma das mais polêmicas e complexas especialidades médicas, cujo conhecimento é posto em xeque a todo instante. Passei pelo SUS em nível ambulatorial e hospitalar, pela docência em algumas faculdades privadas, pelas perícias cível e criminal e pela medicina privada e de planos de saúde também em nível ambulatorial e hospitalar, tendo acumulado, nesse período, um conhecimento que acabou transcendendo a parte técnico-científica, tão necessária - e, freqüentemente, tão mal-utilizada! - na arte médica, e é justamente essa experiência que pretendo dividir com o leitor.
Não há, aqui, qualquer pretensão de se transformar em referência científica, ficando o conteúdo deste espaço muito mais ligado à área literária do que à área médica strictu sensu. Os textos e as opiniões neles contidas são de minha autoria e responsabilidade e os comentários são livres e bem-vindos.
Espero que gostem do resultado.

Luís Augusto Malta, em 15 de junho de 2012