quarta-feira, 12 de setembro de 2012

FÁBRICAS DE DIPLOMAS

Quem tem hoje menos de 25 anos, talvez não faça idéia da dimensão do significado do vestibular no imaginário dos jovens há 15 ou 20 anos. Em meio à explosão hormonal, iniciação sexual, primeiros porres, aproximação da sonhada licença para dirigir e tantos outros estímulos que acabam de moldar a nossa personalidade, havia o temido "funil" do vestibular, que determinaria se (e não em que faculdade) teríamos ou não a profissião dos sonhos. Ser ou não bem-sucedido no vestibular era visto como determinante para o futuro profissional dos jovens de então, em uma época de inflação galopante, explosão da violência urbana e enormes incertezas sobre o futuro (a propósito, a única certeza que permanece imutável é a de que o Brasil é o país do futuro...).
Mesmo nos dias atuais, apesar deste ritual de passagem ter ficado um tanto banalizado pelo aumento exponencial de vagas em faculdades, a vida universitária continua a exercer seu fascínio e, foi com este pano de fundo que, em 2003, fui dar aula em uma tradicional universidade privada no interior de MG. Como o questionamento dos alunos era freqüente sobre qual era a utilidade prática, para a carreira deles, da matéria que eu lecionava, um dia parei a aula para refletirmos juntos sobre a vida acadêmica, começando com a seguinte pergunta, que acabou se tornando o tema das aulas inaugurais de todas as minhas turmas:

"- O que vocês acham que estão fazendo aqui na Universidade?"

Nesta e nas outras duas faculdades em que tive a oportunidade de lecionar, a totalidade das respostas foram variações sobre "aprender uma profissão". Não chega a ser uma resposta incorreta, mas certamente, incompleta.
Basicamente, uma profissão ou ofício se aprende vendo os outros a praticarem - se possível, sob supervisão. Sapateiros, artistas, cirurgiões, bancários, padeiros, engenheiros, pedreiros, atletas, funcionários públicos, pesquisadores, psiquiatras... enfim, toda a sorte de profissionais que pudermos imaginar, parte de um modelo pré-estabelecido e vai imitando-o e aprimorando sua técnica até se transformar em um profissional de excelência. Fatores que corroboram o raciocínio acima são a freqüente observação de que os alunos saem "crus" das universidades e a enorme frustração dos recém-formados quando se deparam com a dura realidade da vida "real", na qual vão encarar (ou não) a profissão que escolheram em um ambiente completamente estranho ao mundo acadêmico.
Se fosse verdade que os alunos estão na faculdade apenas para aprender uma profissão, não poderia haver um enxugamento da grade curricular com enfoque em disciplinas mais objetivas que preparem melhor o aluno para enfrentar a realidade com a qual irão se deparar após a formatura?
Tentador, não?
Certamente. Mas o que, infelizmente, a imensa maioria dos acadêmicos não percebe, é que, muito mais do que habilitar o aluno para um ofício, a carreira universitária existe (ou deveria existir) para que a pessoa aprenda a pensar. O domínio da técnica da profissão escolhida vem por conseqüência. Não creio que exista um modelo ideal de ensino superior nem sou letrado no assunto, mas olhemos para dois exemplos de exuberância em desenvolvimento econômico, científico e tecnológico da civilização ocidental, os EUA e a Alemanha.
No primeiro, o aluno faz cerca de dois anos de uma espécie de "ciclo básico" na universidade escolhida para só depois determinar qual carreira irá seguir. Diferentemente do que ocorre no Brasil, com currículos engessados e previsíveis, cujo ciclo básico acaba sendo visto pela maioria como "aquele monte de matérias inúteis", nos EUA os alunos têm liberdade para estudar história, arte, filosofia e sociologia junto com bioquímica, cálculo ou fundamentos do direito, à sua escolha. Enfim, por lá, no ciclo básico de dois anos ou mais, o aluno se dedica a expandir seus horizontes.
Na Alemanha, ainda na escola, o aluno, dependendo do seu desempenho, já vai sendo direcionado para a carreira universitária (Realschule) ou para os cursos técnicos (Hauptschule), já se acostumando, no caso dos alunos da Realschule, ao pensamento acadêmico antes mesmo de entrar em uma das conceituadíssimas universidades alemãs. Caracteristicamente, a cultura alemã valoriza muito os profissionais de nível técnico e não há o sentimento de inferioridade no aluno direcionado para a Hauptschule.
Em ambos os casos, mais do que formar profissionais, as universidades se dedicam a formar pensadores.
 
Como dito acima, não há aqui nenhuma defesa de um modelo ideal de ensino, mas, comparando os exemplos acima com o que se vê no Brasil, fica fácil perceber que algo está errado com o nosso ensino superior, cada vez mais voltado para facilitar o caminho do aluno em direção a diplomas e habilitações que pouco acrescentam nas suas vidas - são, basicamente, autorizações para exercer determinado ofício. Enquanto houver enfoque em "aprender uma profissão" - que, como dito acima, acaba sendo aprendida de uma forma ou de outra, independentemente do conhecimento formal -, estaremos cada vez mais longe da vocação estabelecida com a criação da Universidade de Bolonha em 1088: formar uma elite intelectual que garanta o futuro da nação.
No caso específico das faculdades de Medicina, devido ao alto custo - financeiro e emocional - do curso, corre-se o risco da frustração dos egressos ser ainda maior.
 
Brasão da Universitá di Bologna, considerada a primeira Universidade moderna do mundo ocidental. Confrontado com o propósito da sua criação, o ensino superior no Brasil parece piada.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A FALÁCIA DO MARKETING PESSOAL

- Cartão de visitas sempre à mão!
- Não deixe o celular impresso no cartão de visitas; anote-o à mão na frente do paciente, isso vai fazer com que ele se sinta especial.
- Invista em blocos personalizados e diferenciados.
- Crie um e-mail corporativo, deixando o de servidores livres apenas para uso pessoal.
- Jamais use canetas de propaganda ou dessas baratinhas de papelaria.
- Não demonstre excesso de disponibilidade ou não será valorizado pelo seu paciente.
- Nunca marque uma consulta para o mesmo dia, a não ser que seja algo urgente.
- Restrinja os horários disponíveis na agenda e concentre os pacientes em horários próximos para dar idéia de que o consultório é movimentado.

Essas e inúmeras outras baboseiras são alguns dos mandamentos básicos de quem quer se "diferenciar" no mercado, segundo os gurus que costumam cobrar os olhos da cara por palestras sobre sucesso pessoal (e sempre aproveitam para vender seus livros, garantindo o próprio sucesso), e quando, do alto dos meus 25 anos, terminei a residência médica e resolvi investir no consultório particular, procurei segui-las à risca, não questionando muito sua eficiência. Investi mais do que podia em uma sala luxuosa em um edifício comercial bacana, fiz tudo como manda o figurino e, surpreendentemente, após um ano, o resultado foi... desapontador! Sem mais dinheiro para bancar a aventura, me recolhi à minha insignificância, realizei um belo prejuízo deixando a mobília cara com o ex-sócio e comprei uns móveis baratos em dez vezes sem juros para recomeçar em um lugar mais condizente com minha realidade. Como eu andava completamente quebrado, fui protelando todas as medidas às quais fui tão atento na minha primeira empreitada, até que me descobri protelando-as todas - sem exceção - até hoje, dez anos depois.
Mais ou menos na mesma época da falência do meu primeiro consultório, eu andava pensando em levantar um dinheiro para fazer um grande negócio junto com uns amigos, mas precisava de assessoria jurídica para dar andamento à coisa. Liguei para um renomado advogado que me indicaram e, na conversa inicial, quando eu esperava que ele se mostrasse ocupado e fosse o mais breve possível, forçando uma visita com hora marcada ao seu escritório, ele fez o seguinte comentário:

- Dr. Luís, eu estou absolutamente à sua disposição. Vamos tirar todas as suas dúvidas por telefone no tempo que for necessário. Depois, se o Sr. achar que é o caso, marca com seus sócios uma visita aqui no escritório.

Essa experiência me marcou profundamente. Como é que um advogado bem-estabelecido poderia ter tempo para dedicar a um moleque recém-formado que queria fazer um negócio maluco que, obviamente, deu em nada? Depois desse, foram mais três ou quatro telefonemas, sempre com a mais absoluta disponibilidade ou com breve retorno caso o advogado estivesse ocupado. Curiosamente, nunca o conheci pessoalmente e tampouco ele me cobrou um único centavo pela sua assessoria preliminar.
Mais tarde, após ter acumulado alguma experiência, pude perceber que ele usou a única ferramenta realmente eficaz para o sucesso profissional (além, é claro, da excelência técnica): a autenticidade. Até hoje é possível lembrar, no seu discurso, um interesse genuíno em me ajudar, orientar, tirar obstáculos, iluminar meu caminho - enfim, fazer o seu trabalho da melhor forma possível.
Trocando em miúdos, se você valoriza relógios e canetas sofisticadas, gosta de se vestir com apuro ou preza o design em seus objetos de trabalho, invista nisso, mas para o seu próprio prazer, nunca para impressionar seu interlocutor que, invariavelmente, vai estar muito mais concentrado no problema que o levou a te procurar do que na marca da sua camisa ou no tipo de papel do seu receituário.
Na sociedade atual, na qual, entre os livros mais vendidos, sempre estarão uma meia-dúzia cujo título começa com "Como" (como ficar rico, como enlouquecer um homem na cama, como virar chefe em um mês, como atingir a paz espiritual, como comer mais do que precisa e não engordar, como se casar, como se separar, como criar filhos bem-sucedidos, como ser mais feliz que seu vizinho, como isso, como aquilo...), querendo fazer crer que sucesso e realização pessoal possam ser alcançados seguindo uma simples receita, a lição aprendida com alguns telefonemas para um profissional de excelência foi bem mais proveitosa. E, para os mal-humorados que estão pensando "e daí, o que o advogado ganhou com isso?", podem saber que não foram poucos os clientes que recomendei ao seu escritório nesses anos. Sem cartãozinho de visita.


Capa de livro escolhida aleatoriamente no Google - muita gente ainda acredita nisso


terça-feira, 31 de julho de 2012

CULTURA (NEM SEMPRE) INÚTIL

Uma dos requisitos mais importantes de quem se propõe a prestar um serviço que depende, essencialmente, de criar empatia com o interlocutor, é ter uma boa bagagem cultural. Diagnosticar e tratar quadros médicos cotidianos não é lá muito difícil, mas perceber as sutilezas das demandas dos pacientes e de se diferenciar a ponto dele perceber que sua escolha por este ou aquele profissional realmente valeu a pena depende da nossa capacidade de entender e penetrar em seu universo. Assim, não é raro me ver discutindo especulação na bolsa de valores, viagens internacionais, publicidade, geopolítica, arte, história, filmes clássicos, moda feminina, música clássica, aviação e - óbvio para quem me conhece - carros antigos, entre outros temas tão diversos quanto fascinantes. Tais discussões costumam ser o caminho mais fácil para conquistar a empatia necessária para a chamada "aliança terapêutica", através da qual os tratamentos tendem a ser muito mais eficientes, mas não é exatamente isso que se pretende discutir aqui hoje.
Apesar de ter uma bagagem razoável para transitar por temas tão diferentes quanto os que citei, não me considero, naturalmente, especialista em nenhum deles, mas o interesse genuíno pelo discurso do interlocutor pode, de vez em quando, produzir resultados surpreendentes como o que narro a seguir, ocorrido há poucos meses.
Tenho um cliente que é absolutamente fascinado (o mais correto seria dizer "adoecido" ou "enlouquecido", mas não ficaria bem em um blog sobre um consultório psiquiátrico...) por aviação. Perto dele, apesar de entender um pouco do tema, posso me considerar um "aspirante a principiante" e, como seu quadro psiquiátrico tem estado sob controle, sempre sobra tempo, nas consultas mensais, para um ótimo papo sobre aviões e suas histórias.
Paralelamente a isso, um grande amigo de cerca de 30 anos de idade, diabético desde os 15, andava chateado porque foi detectada uma degeneração em sua retina atribuível ao quadro de diabetes, apesar do seu rigorosíssimo controle da glicemia e de atividades físicas regulares. Esse amigo mora há cinco anos na Ásia e, por contingências profissionais, viaja muito pelo mundo.
Voltando ao cliente dos aviões, estávamos conversando sobre os primórdios da aviação civil e os problemas que foram sendo superados com o progresso da tecnologia aeronáutica, até que ele citou um desafio que continua inalterado em um século de história:

- Pois é, Doutor, veja que coisa curiosa. Desde cedo, percebeu-se que diabéticos têm tendência a ter descolamentos de retina quase imperceptíveis em vôos mais longos. Pensou-se que, com a pressurização das cabines isso não ocorreria mais, mas esses descolamentos continuam acontecendo...

Para um diabético que voa uma ou duas vezes por ano em viagens de turismo, a repercussão dessa observação só é significativa em um prazo de décadas, mas para esse amigo, que chega a fazer três vôos intercontinentais por ano, fora a infinidade de vôos pelo sudeste asiático, o organismo já cobrou seu preço - felizmente, ainda perceptível apenas em exames sofisticados, de modo que ainda é perfeitamente possível uma evolução benigna se alguns hábitos forem modificados, o que já está sendo feito após o meu alerta e a consulta dele ao especialista.
Cabe dizer aqui que este amigo é acompanhado por um endocrinologista e um oftalmologista, ambos de competência inquestionável, mas que não tinham levantado essa possibilidade, talvez porque a informação seja muito mais familiar ao meio aeronáutico do que ao meio médico, até pela rotina intensa de vôos que é necessária para que o problema se manifeste, algo ainda relativamente pouco comum no Brasil.
De qualquer forma, fica um relato bem ilustrativo de como "sorte" e "acaso" tendem a sorrir mais para quem está atento a pequenos detalhes, mesmo quando a consulta médica objetiva já aparenta ter dado tudo o que tinha que dar.
Os clientes agradecem (e, nesse caso específico, agradecem uns aos outros...).


Um Junkers Ju-52 dos anos 30 e um Antonov 225 atual. Apesar dos avanços tecnológicos, os diabéticos continuam penalizados pela aviação

quinta-feira, 19 de julho de 2012

PSIQUIATRIA E ARTE

"Pode ser que você ainda não tenha se dado conta disso, mas o fato é que todas as coisas belas do mundo são filhas da doença. O homem cria a beleza como remédio para o seu medo de morrer. Pessoas que gozam de saúde perfeita não criam nada. Se dependesse delas, o mundo seria uma mesmice chata. Por que haveriam de criar? A criação é o fruto do sofrimento" - Rubem Alves

Certa vez, um determinado laboratório estava promovendo seu medicamento, ao qual vamos chamar pelo nome fictício de "Deprimex", associando-o à figura de Van Gogh. Assim, a cada mês em que eu recebia a visita do representante, vinha junto uma reprodução de alguma obra do mestre holandês ou um livro sobre sua turbulenta biografia, sempre enfatizando o diagnóstico de transtorno bipolar do qual ele padecia. Até que, um dia, o pobre representante perdeu a chance de ficar calado:

- É, doutor, se já extstisse o Deprimex naquela época, o Van Gogh teria vivido bem melhor...
- Mas não seria o grande Van Gogh que conhecemos - foi o que consegui responder.
Auto-retrato de Vincent van Gogh (1887-88)
Vivemos em uma época de estranhas contradições. Em um mundo que, cada vez mais, apregoa a igualdade racial, inclusão social, defesa de minorias e tudo mais, nunca se viu tamanha "medicalização" da angústia inerente à existência humana, o que pode, em última análise, ser visto como uma contraditória intolerância com as diferenças - se alguém saiu do padrão esperado, certamente enquadra-se em alguma doença, segundo esse raciocínio.
Crianças agitadas são descuidadamente diagnosticadas como hiperativas, perdas e frustrações se tornam justificativa para tomar antidepressivos e qualquer rompante de mau-humor é suficiente para classificar o sujeito dentro do "espectro bipolar", isso para ficar apenas na área da psiquiatria.
Naturalmente, me refiro, nos exemplos acima, à medicina mal-feita, de consultas de 10-15 minutos a cada dois meses, que só se preocupa em tratar sintomas e nunca tem tempo para compreender a complexidade do momento vivido pelo indivíduo, mas, infelizmente, é a essa medicina que a grande maioria do público tem acesso e, diante da facilidade em passar um "remedinho" como resposta a sofrimentos muitas vezes subjetivos, fica o alerta para uma perigosa tendência de pasteurização de uma sociedade cada vez menos criativa - e, naturalmente, mais angustiada.
Mas, ao contrário do que, eventualmente, possa parecer ao grande público, a Medicina não é vilã nessa história. Se o infeliz exemplo do Deprimex para resolver os problemas do Van Gogh pode ser visto como emblemático de um ponto de vista distorcido a respeito dessas excelentes ferramentas que são os psicotrópicos, deixo com os leitores um pequeno texto que escrevi em 2006 a respeito de um dos Concertos para Piano mais famosos da história, que, incidentalmente, cita como foi decisivo o papel de um médico na história do compositor.

Rachmaninov – Concerto para Piano e Orquestra no. 2
 A música na Rússia seguiu uma trajetória diversa daquela produzida no restante da Europa durante o século XIX. As formas e as diretrizes de composição no Velho Continente foram estabelecidas ainda no final do século XVII e, enquanto os mestres ocidentais expandiam as formas da música erudita – movimento iniciado por Beethoven e consolidado pelos românticos no início do século XIX – os russos ainda começavam a estruturar a sua própria escola de composição. Esse relativo atraso se justificava pelo próprio atraso político e econômico da sociedade russa, predominantemente autocrática e agrária e ainda sob grande influência da Igreja Ortodoxa. Não obstante, membros de uma elite abastada e de uma classe média incipiente perceberam que, após a vitória sobre Napoleão Bonaparte, a Rússia deveria se projetar para o mundo ocidental. Logo surgiriam os criadores de uma expressão genuinamente russa de arte que antecipariam os gigantes da segunda metade do século. Assim, Puchkin, na literatura, precedeu Dostoievski e Tolstoi, enquanto Glinka antecipou Mussorgsky e Tchaikovsky na música. No caso dessa última, houve uma importante cisão, com a escola de Mussorgsky (também conhecida como “O Grupo dos Cinco”, ou Kuchka) defendendo que uma arte genuinamente russa não deveria seguir os padrões de elaboração estabelecidos pelo ocidente e antagonizando Tchaikovsky, cujo ponto de vista era o de que o colorido eslavo deveria ser dado a formas acadêmicas de composição. Fosse de quem fosse a razão, uma escola russa de música estava estabelecida na virada do século XX, pronta para dar ao mundo uma nova safra de notáveis compositores que dominariam o cenário musical na primeira metade do século, principalmente após a Primeira Grande Guerra, como Scriabin, Rachmaninov, Stravinsky e Prokofiev.
Sergei Rachmaninov (1873-1943) foi, possivelmente, o maior pianista do século XX. Formado no renomado Conservatório de Moscou, soube captar de modo muito peculiar a tendência de ocidentalização da música russa iniciada por Tchaikovsky, mas alcançando uma estrutura formal e um equilíbrio estético raramente atingidos por aquele em seus concertos e sinfonias. Sua vida foi marcada por sucessos internacionais interrompidos por graves crises depressivas e terminada com rumores de suicídio (na verdade, o compositor morreu de câncer de pulmão, na sua mansão em Beverly Hills, pouco antes de completar setenta anos). Produziu freneticamente em alguns períodos e praticamente se retirava da vida pública em outros. Seu concerto para piano e orquestra no. 2 op. 18, um típico exemplo da produção do romantismo tardio, data de 1901 e viria a se tornar a sua obra mais conhecida. A história da produção desse concerto ilustra bem o que foi a vida do compositor: já consagrado como virtuoso do piano, ele compõe sua primeira obra de grande envergadura, a sinfonia no. 1, de 1897, que foi muito mal recebida pelo público. Acometido por grave crise depressiva, ele queima a obra e se retira da vida pública com fortes tendências suicidas. É tratado, então pelo psiquiatra Dr. Nikolai Dahl que, com a técnica de hipnose e sugestionamento, convence Rachmaninov a criar um novo concerto para piano. Animado com a nova empreitada, ele compõe o seu Segundo Concerto de maneira febril e o sucesso dessa obra inaugura um período de grande produtividade para o compositor que culminaria com o concerto para piano no. 3 e o poema sinfônico “A Ilha dos Mortos”, ambos de 1909 e feitos especialmente para uma turnê pelos EUA.
A melodia apaixonada do Segundo Concerto, marcado pelo colorido fortemente eslavo e pela virtuosidade, é contida em uma estrutura formal iniciada por Vivaldi ainda no alto barroco italiano, porém bastante expandida. O primeiro movimento, o mais complexo e desenvolvido, nos mostra uma seqüência de temas expostos de maneira rapsódica, sem o típico desenvolvimento com antagonismos de tema e contra-tema que marcaram a música erudita européia até o movimento impressionista. O solista duela com a orquestra de maneira muito virtuosística com seqüências que beiram os limites das possibilidades físicas para o pianista. O segundo movimento, cheio de lirismo, quase uma reconciliação do piano com a orquestra, nos permite perceber a típica construção melódica do compositor que, segundo vários críticos, foi o grande inspirador (alguns dizem que foi mais do que isso) das melodias dos clássicos de Hollywood. O terceiro movimento, mais leve do que o primeiro, alterna um ritmo de dança com uma nova melodia de colorido eslavo que nos leva a um finale emocionante nitidamente inspirado em Tchaikovsky.
Poucos compositores tiveram uma carreira dividida de maneira tão clara quanto Rachmaninov: após a Revolução Bolchevique de 1917, ele se mudou definitivamente para os EUA e sua produção, embora sem perder o colorido eslavo, passou a sofrer influências das harmonias do Jazz (que também influenciaria a música erudita européia, particularmente a francesa). As grandes obras desse período são a sinfonia no. 3 e o concerto para piano no. 4, ambos datados dos anos 20; embora interessantes, soaram um tanto inautênticas para muitos entusiastas e jamais repetiram o sucesso das composições anteriores, talvez os últimos estertores do movimento romântico na história das artes.

Sergei Rachmaninov

quarta-feira, 11 de julho de 2012

IN GOD WE TRUST. OTHERS, BRING DATA, PLEASE

A frase acima resume bem como o mercado, de uma maneira geral, quantifica o conhecimento e nos faz pensar sobre como a tão angustiada civilização atual espera que levemos nossas vidas, nossas escolhas e responsabilidades. Números frios a respeito de práticas e resultados podem funcionar bem em grandes corporações, mas, se tiverem sua importância e significado exagerados nas relações humanas - e na prática médica, tema deste blog -, podem colocar a perder toda a sutileza e encanto que envolve o aspecto  não-mensurável do conhecimento.
Por outro lado, a parte técnica da medicina precisa ser balizada em um sólido conhecimento sistematizado para que o profissional não caia na vala comum do "chute", do "achismo" e dos cacoetes profissionais que infestam a boa medicina, muitas vezes pela pressão sofrida pelo médico para atender cada vez mais gente em cada vez menos tempo e encher as planilhas dos burocratas com números vistosos que pouco revelam a respeito da real assistência dada a um determinado grupo.
A capacidade de equilibrar a parte técnico-científica da medicina com a sensibilidade em lidar com o lado mais frágil do ser humano - o seu sofrimento, seja ele objetivo ou não - é uma qualidade rara que tem sido, cada vez mais, objeto de estudo dos que buscam otimizar um dado simples de coletar e constatar: o índice de satisfação dos clientes.
Ter a percepção correta de como está esse equilíbrio em um universo tão restrito como a clientela de um consultório particular, como é o meu caso, é fácil; o próprio movimento do consultório é um excelente balizador do custo-benefício do atendimento oferecido. Mas, passando para as políticas de saúde pública e dos planos de saúde: quanto custa um atendimento ou procedimento médico insatisfatório? Quanto se gasta com exames desnecessários, peregrinação de pacientes por vários especialistas em consultas que pouco resolvem, dias de licença do trabalho, queda da produtividade, aparecimento de queixas crônicas, aumento do consumo de etílicos e mesmo de psicotrópicos?
A experiência pessoal mostra que a velha Medicina, praticada com calma e em harmonia com a demanda do cliente é muito mais eficiente do que a medicina de condutas padronizadas - me refiro aqui às rotinas de consultório, não a atendimentos de urgência ou de unidades de terapia intensiva -, mas, em pleno século XXI, na era da hiperinformação em tempo real, a percepção subjetiva de que tal procedimento é mais eficiente do que o outro não basta mais. Não seria hora de alguém se debruçar sobre a questão e sistematizar essa tese? Não seria a hora dos planos de saúde investirem nesse tipo de conhecimento e valorizarem os profissionais realmente resolutivos remunerando-os de forma diferenciada? Não seria a hora de abandonar números exuberantes que pouco dizem sobre a assistência à pessoa?
Aproveitando a célebre frase do "Chanceler de Ferro" Otto von Bismark a respeito de política, "Medicina não é uma ciência, como supõe a maioria dos senhores professores, mas uma arte".
Quem conseguir sistematizar essa verdade com dados convincentes pode dar um passo importante para a mudança de um modelo de assistência que conseguiu a proeza de deixar instituições (muitas das quais estão à beira da falência), médicos (que ganham pouco pelos seus procedimentos) e pacientes (que pagam caríssimo pelos seus planos de saúde) insatisfeitos, enquanto a velha figura do médico da família, referência para a decisão sobre qualquer conduta, mesmo fora da sua especialidade, virou raridade.
                                       "O Médico", de Sir Samuel Luke Fields (1891)

terça-feira, 26 de junho de 2012

AINDA SOBRE VINHOS E CLIENTES

Desde o desastroso episódio de 2005, posso dizer que meu conhecimento sobre vinhos melhorou exponencialmente. Não me tornei nenhum erudito no assunto, mas o mergulho na história da mais charmosa das bebidas me trouxe uma bela bagagem cultural que, volta e meia, é usada na lida diária. E, de todas as regiões vinicultoras do mundo, uma exerce fascínio especial pela sua história e pelos seus vinhos únicos: a Campanha francesa.
Situada na região fronteiriça da França com a Bélgica, a Champagne, como dizem os franceses carrega consigo um paradoxo: seus vinhos são sempre associados a celebrações e momentos de júbilo, mas a região é uma das que têm a história mais turbulenta da Europa, tendo sido vítima de frequentes saques, invasões e banhos de sangue desde a Antiguidade. Quando não eram as guerras, eram as pragas e o clima desfavorável que arruinavam as safras; o solo da região era outro obstáculo, pois era pobre para o cultivo das vinhas, que tinham que ser colhidas prematuramente e terminavam de fermentar nas garrafas, originando o gás da bebida. Este, por sua vez, fez com que muitas garrafas estourassem na cara ou nas mãos dos vinicultores, cegando-os ou aleijando-os irremediavelmente, problema que só foi superado com o aperfeiçoamento da técnica de fabricação do vidro.
Tantos revezes e tanta superação acabaram por moldar o caráter altivo dos champenois, de modo que, quando a I Guerra começou, em 1914 - que, por um capricho do destino, foi ano de uma safra espetacular - e todo o poderio militar alemão caiu sobre a França, os chefes de adega, sabendo o significado do vinho que produziam, profetizaram, contra todas as probabilidades:
- "Esta será a safra da Vitória!"
Foram quatro anos de horror, bombas de poderio nunca visto, gases tóxicos, destruição de vilas inteiras, massacre da população civil e perda de mais de um milhão de vidas só do lado francês.
Até que, em 1918, com o término das hostilidades, as garrafas de 1914 foram abertas. E estavam, como previram seus produtores, realmente dignas de celebrar a vitória sobre a Alemanha que, muito emblematicamente, assinou o armistício na Champagne.
Toda essa história serve para ilustrar como, muitas vezes, até a mais desesperadora das situações e até a pior seqüência de reveses merece empenho e esperança. Débâcles financeiras, casamentos despedaçados, filhos problemáticos, doenças graves e perdas repentinas de entes queridos costumam desencadear crises nervosas que acabam levando pessoas até então sadias a um consultório psiquiátrico. Pessoas que não precisam de um diagnóstico sofisticado ou de um tratamento médico formal, precisam apenas de histórias inspiradoras que lhes permitam reunir forças para superar os problemas que as levaram a buscar ajuda. A maneira com que contamos essas histórias pode mudar o curso da História das pessoas e fazer com que chegue o dia da Vitória. E, quando isso acontece, quase sempre, uma garrafa do mais refinado vinho de Champagne em ótima companhia é a melhor prescrição.

terça-feira, 19 de junho de 2012

BLOOPERS

Pretensioso o primeiro post, não? Pena que nem sempre as coisas corram assim...
Em um consultório médico, cada novo paciente que chega é um universo inédito para explorarmos. E, diante de tamanha exigência, é natural que, nem sempre, a gente se saia tão bem como gostaria. Esta história ocorreu no final de 2005 e ilustra bem o efeito de uma "bola fora".
Desde que me casei e me vi, do dia para a noite, independente da rotina da casa dos meus pais, me interessei bastante pelo universo dos vinhos. Gostava de acompanhar as colunas de um conhecido enólogo (que, com o tempo, percebi ser meio picaretão e impreciso em suas opiniões) que, certa vez, falou que a qualidade dos vinhos da Borgonha importados ultimamente havia melhorado muito. Naquela época, eu sabia que a Borgonha era uma região vinicultora da França, mas não fazia idéia de que era a grande rival de Bordeaux como a melhor produtora de vinhos do mundo! Só para ficar no exemplo mais famoso, o caríssimo e exclusivo Romanée-Conti é feito em Bourgogne, como dizem os franceses. Enfim, uma discussão entre vinhos de Bourgogne e de Bourdeaux na França é algo como discutir Atlético x Cruzeiro em Belo Horizonte ou EUA x URSS no auge da guerra fria ou, ainda, Maverick GT x Charger R/T entre os antigomobilistas. E os borgonheses, naturalmente, não têm a menor dúvida de que seu vinho é, de fato, o melhor do mundo.
Foi com esse pano de fundo que atendi, no final de 2005, um jovem e distinto senhor estrangeiro, que chegou muito bem recomendado ao meu consultório. Seu problema era relativamente grave a demandava atenção. Após alguma formalidade, ele se apresentou como francês da Borgonha e comerciante de vinhos... e a pérola do dia saiu da minha boca:

- Ah, o senhor é da Borgonha... soube que os vinhos de lá têm melhorado muito...

Alguém consegue imaginar um efeito mais catastrófico? Se alguém falasse para um torcedor argentino que Maradona foi um jogador "até razoável" ou para um dos Tifosi italianos que a Ferrari faz esportivos "legaizinhos", não faria um estrago tão grande. Pode ser fantasia minha, mas lembro de ter a impressão de que o francês fez menção de se levantar e ir embora. Dali em diante, nada do que eu dissesse poderia salvar o dia. Lembro que percebi a mancada e me esforcei para me concentrar no problema que o levara ao meu consultório, mas o destino daquela relação médico-paciente já havia sido selado: obviamente, ele nunca mais voltou e nunca mais tive notícias dele.
Foi apenas seis anos depois, no final de 2011, que tive a oportunidade de me redimir, se bem que bem longe do consultório, com o povo Borgonhês.
Em 2010, comprei uma Kombi 1974 de um amigo, que a comprara havia pouco tempo do seu primeiro dono, mas decidira passá-la adiante. A Kombi era (é) inacreditavelmente conservada e trazia a particularidade de ter sido transformada artesanalmente em um engenhoso motor-home pelo seu primeiro proprietário, que só a vendeu porque foi vítima de um AVC que lhe trouxe limitações físicas que o impossibilitaram de dirigir. Algum tempo depois de comprar a Kombi, fiz questão de conhecer o Sr. Paul Auriol, um francês octogenário radicado no Brasil desde os anos 70 e responsável pela conservação ímpar do carro  após 37 anos de uso. Apesar das limitações impostas pela seqüela do AVC, pude notar seu sorriso quando ele disse que era de Dijon e eu repliquei que sua região (Bourgogne) produz alguns dos melhores vinhos do mundo e que gostaria muito de conhecê-la um dia. Um prêmio de consolação para um bad day at office de seis anos antes. 

domingo, 17 de junho de 2012

PSIQUIATRA É MÉDICO?

Trata-se de uma pergunta bem mais freqüente do que se imagina, muitas vezes embaraçosa, dependendo do enfoque que é preciso dar para cada caso. O que se vê é que, até mesmo em função do pouco uso do conhecimento da medicina mais generalista, o especialista acaba se afastando de condutas que são rotineiras até mesmo para um estudante dos últimos anos, mas a essência da prática médica e o raciocínio clínico não o abandonam e muitas vezes o surpreendem. Talvez por isso, eu me apresente como Médico Psiquiatra, não apenas como Psiquiatra. O caso de hoje ilustra bem a questão.
Há pouco mais de três anos, uma paciente, a quem vamos chamar de Amanda, me procurou a pedido de uma amiga, que já era minha cliente. Ela não sabia exatamente a razão de ter marcado comigo, dizendo apenas que tinha uma sensação subjetiva de não estar se sentindo bem. Já havia passado em alguns  médicos (um clínico, um ortopedista e na sua ginecologista) que não observaram nada de errado com ela. 
Aqui, cabe uma pausa para descrever Amanda. Tinha 37 anos, era casada, mãe de dois filhos pequenos. De origem humilde, conseguiu fazer curso superior e, ao lado do marido, era uma empresária muito bem sucedida, estando em franca ascensão econômica e social. Começava a se envolver com o mundo dos vinhos sofisticados e da alta costura, mas sem afetações. Não tinha queixas da vida. Alta, esguia e dona de um belo par de olhos azuis, era difícil entender seu ponto de vista de que algo não parecia estar bem.
"Uma somatizadora", foi a primeira idéia (somatizador, basicamente, é o paciente que transforma conflitos psíquicos em sintomas físicos nem sempre justificáveis por exames clínicos objetivos), mas seu discurso, sua postura diante dos problemas que eu colocava para pensarmos, não corroboravam essa hipótese que, mesmo assim, ficou pairando em meu imaginário por algum tempo. Enfim, ao final da primeira consulta, eu lhe disse que não fazia idéia do que estava errado com ela, mas lhe convidei a marcar um novo horário e ela aceitou, completando que talvez a resposta estivesse em uma psicoterapia. 
E assim foi. 
No decorrer das quatro ou cinco consultas subsequentes, em um intervalo de cerca de dois meses, ela relatava uma sensação subjetiva de melhora; trabalhava e cuidava da família normalmente, coisa que, aliás, nunca deixara de fazer. Não havia qualquer sinal de depressão. Faltava, no entanto, alguma consistência que eu não conseguia captar, até que ela descreveu uma cena interessante.
Em um dia qualquer, Amanda percebeu que estava evitando brincar com os filhos assentada no chão por causa de uma dor lombar que não melhorava e, muitas vezes, se agudizava a ponto de obrigá-la interromper o que estivesse fazendo. Disse isso de maneira absolutamente casual, pois não entendia essa dor como um sintoma digno de ser relatado, atribuindo-a ao sedentarismo ou a um colchão inadequado; mas, na consulta subseqüente, a dor lombar ganhou importância. Em outra ocasião, começamos a falar de família e filhos. Ela considerava que sua família já estava completa e que tentava convencer o marido a fazer vasectomia.
"- E como vocês estão evitando filhos?" - perguntei.
"- Tentei usar o Mirena, mas não me adaptei por causa de hemorragias. Me adaptei melhor ao Implanon."
Tanto o Mirena quanto o Implanon são estruturas introduzidas no corpo da mulher (o Mirena é um tipo de DIU e o Implanon é um pequeno bastão subcutâneo) que liberam hormônios sintéticos semelhantes à progesterona para evitar a gravidez.
A charada estava morta!
Passamos a nos concentrar na dor lombar e,quando eu lhe perguntei se ela havia sentido algo semelhante nas gestações, ela deu um pulo da cadeira:
- A dor é idêntica!
- E essa sensação subjetiva de desânimo e de que algo está errado? - arrisquei.
- Também!
Expliquei para a Amanda que, do ponto de vista funcional do organismo, ela estava grávida, já que a liberação contínua de progesterona é exatamente o que ocorre na gestação; só não havia o feto. A progesterona pode provocar indisposição nas mulheres e relaxamento dos ligamentos próximos ao quadril para aumentar o espaço para o útero crescer; esse afrouxamento pode provocar até dores incapacitantes em algumas grávidas.
A solução para o problema da Amanda, obviamente, não estava mais em um consultório psiquiátrico; orientada a retirar o Implanon, ela enfrentou alguma resistência da sua ginecologista, mas, menos de uma semana depois de ser ver livre da progesterona sintética, as dores e o desânimo desapareceram completamente.
Amanda teve alta da psiquiatria depois de cerca de três meses desde a sua primeira consulta, sendo que o conhecimento psiquiátrico aqui foi o de menor importância.
Esse raciocínio descrito acima não tem nada de espetacular. Trata-se do be-a-bá da rotina de qualquer estudante do quinto ano quando todos os dados estão à mão. O problema é que, muitas vezes, não estão, e o trabalho do médico é o de montar um quebra-cabeça que parece sem todas as peças. O cliente, que não tem a menor obrigação de saber quais peças são mais importantes, vai fornecendo ao profissional atento as pistas para desvendar o problema, mas a pressa, o preconceito e a necessidade de "enquadrar" o paciente em um raciocínio pré-estabelecido (imagine o tamanho do prejuízo se ela fosse tratada como "somatizadora") podem fazer com que essas peças se percam para sempre.
Parafraseando uma frase batida, o especialista pode até se afastar da medicina geral, mas a Medicina nunca se afasta do bom especialista. E a essência da boa Medicina ainda está em entender o universo do paciente em toda a sua complexidade; a solução para certas questões pode ser bem mais simples do que se imagina.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

APRESENTAÇÃO

A idéia de deixar registrada alguma coisa sobre a minha atividade cotidiana - a medicina praticada em consultório particular - surgiu da demanda dos próprios clientes. Muitas vezes recorro, em minhas intervenções, a citações e exemplos quase nunca encontrados em livros técnicos ou manuais de diagnóstico e tratamento. E não é raro que a intervenção venha seguida de alguma observação do tipo "você deveria escrever sobre isso!"
Comecei minha carreira de médico no início de 2001 e terminei a residência em psiquiatria no final de 2002 - já são quase dez anos lidando com uma das mais polêmicas e complexas especialidades médicas, cujo conhecimento é posto em xeque a todo instante. Passei pelo SUS em nível ambulatorial e hospitalar, pela docência em algumas faculdades privadas, pelas perícias cível e criminal e pela medicina privada e de planos de saúde também em nível ambulatorial e hospitalar, tendo acumulado, nesse período, um conhecimento que acabou transcendendo a parte técnico-científica, tão necessária - e, freqüentemente, tão mal-utilizada! - na arte médica, e é justamente essa experiência que pretendo dividir com o leitor.
Não há, aqui, qualquer pretensão de se transformar em referência científica, ficando o conteúdo deste espaço muito mais ligado à área literária do que à área médica strictu sensu. Os textos e as opiniões neles contidas são de minha autoria e responsabilidade e os comentários são livres e bem-vindos.
Espero que gostem do resultado.

Luís Augusto Malta, em 15 de junho de 2012