quarta-feira, 13 de abril de 2016

FRAGMENTOS DE UM PASSADO REMOTO (I)

Minha mania de escrever não vem de hoje. Verificando umas pastas antigas aqui do computador, achei uns textos sobre música clássica que fiz em 2005 ou 2006 e resolvi compartilhar aqui, sem revisão, exatamente como foram escritos. O tema não tem nada a ver com Medicina, mas achei bobagem criar outro blog só para isso...


Saint-Saëns – Sinfonia no. 3 “Com Órgão”



Camille Saint-Saëns



Em seu livro “O Mundo é Plano” (Objetiva, 2005), o jornalista Thomas L. Friedman divide a era moderna em três grandes fases: a primeira teria se iniciado com o descobrimento da América por Cristóvão Colombo; a última, iniciada com a queda do muro de Berlim, se consolidou com a revolução digital que viria na década seguinte. A segunda, embora o autor não tenha definido o seu início por um evento específico, pode ser creditada a um personagem: Napoleão Bonaparte, ou Napoleão I, após ter se proclamado Imperador da França. No mundo atual, de extrema rapidez de informação, no qual valores aparentemente consolidados se tornam obsoletos da noite para o dia, a extensão da influência de um único homem na civilização ocidental parece quase fantasiosa, mas foi com o desequilíbrio da estrutura de poder estabelecida nos séculos anteriores que ele se tornou o grande responsável pela fascinante história moderna da Europa – particularmente da França – que se caracterizou principalmente pela aceleração do desenvolvimento tecnológico. Com as conquistas de impérios seculares pelo exército francês e, principalmente, com a proibição das áreas sob influência napoleônica (entenda-se, quase toda a Europa) de manter comércio com a Inglaterra através do bloqueio continental, Napoleão desencadeou uma corrida por produtividade que forçaria a abertura de novos mercados e novas áreas de influência, inaugurando o imperialismo moderno, cujo apogeu se deu nos anos imediatamente anteriores à Primeira Grande Guerra. Na França, após a queda de Napoleão, houve diversos lances na busca pelo poder; finalmente, após a revolução de 1848, instalou-se a Segunda República, para insatisfação da nobreza remanescente e, principalmente, da alta burguesia, já que a França estava perdendo espaço na corrida imperialista para a Prússia, Inglaterra e Império Austríaco. Assim, ainda nos anos de Segunda República, os setores insatisfeitos da sociedade francesa se aproveitaram da lenda em torno de Napoleão I para apoiar o então presidente da nação e seu sobrinho Luís Napoleão Bonaparte a concentrar o poder e diminuir a importância do legislativo. Em 1851, ele daria o golpe de estado, proclamaria o Segundo Império Francês e se intitularia o seu Imperador sob a alcunha de Napoleão III, dando início a mais um capítulo da conturbada história da França no século XIX. Para aplacar as massas, o novo Imperador deu um novo rosto a Paris, transformando-a na esplendorosa capital mundial que conhecemos hoje e, sob a coordenação do Barão Haussmann, boa parte da cidade foi reconstruída, tornando-se um modelo de urbanismo para o resto do mundo, com espaço para largas avenidas e impressionantes construções, entre as quais se destacam, até hoje, o Palais Garnier, sede da Ópera de Paris, e a Avenue des Champs Elyseés. O outro lado da história foi a destruição da antiga capital intelectual da Europa, com seus pequenos e aconchegantes cafés, residências e caves históricas dando lugar a obras que acabavam, segundo alguns, tendendo para o colossal e para o mau gosto. Paralelamente, a ascensão de Napoleão III trouxe novamente ao círculo do poder a velha nobreza francesa remanescente da era sob domínio dos Bourbons e a nova nobreza, ligada mais diretamente ao imperador ou à alta burguesia que o sustentava, ambas com todos os vícios e frivolidades que mudariam – mais uma vez – os costumes e o modo de expressão dos artistas gauleses. Boa parte da intelectualidade que colocara Paris em destaque na primeira metade do século foi posta em segundo plano e os artistas favoritos do “novo” sistema de governo souberam produzir aquilo o que a elite queria consumir. Assim, enquanto na literatura, os romances de Alexandre Dumas sucederam as obras de Victor Hugo, na música, o fino romantismo de Chopin, Liszt e Berlioz, foi substituído pelas operetas de Offenbach, pela “Grand Ópera” de Meyerbeer e pelos bailados de Adam e Delibes, todos lembrados hoje muito mais pela sua posição histórica do que pelo valor propriamente musical de suas obras.
Foi nesse ambiente relativamente desfavorável aos artistas de maior profundidade que viveu Camille Saint-Saëns (1835-1921). Considerado um prodígio ao piano – quando criança chegou a ser comparado a Mozart – Saint-Saëns teve uma sólida formação musical que o colocaria apto a criar uma tradição sinfônica autenticamente francesa, o que acabou não se consolidando, tanto pelas circunstâncias sócio-políticas pouco favoráveis, como pela personalidade conservadora do compositor. Embora sua arte não tenha acompanhado os movimentos de transformação da música erudita que ocorriam em Viena e na Alemanha, Saint-Saëns nem sempre procurou compor deliberadamente para agradar ao grande público de Paris, composto, como vimos, por uma nobreza frívola ou por uma elite econômica inculta, e acabou por se esconder por trás de um academicismo muitas vezes anacrônico e carente da autêntica expressão artística. Sua obra é marcada pela irregularidade e pelo ecletismo: composições que foram recebidas com certa frieza (como a ópera “Sansão e Dalila”) ou com vaias (como o poema sinfônico “Dança Macabra”) são, hoje, as suas obras mais valorizadas, enquanto seus sucessos em vida, como as peças para piano solo e concertos, estão fora do repertório usual. Uma notável exceção foi a sua quinta e última sinfonia (publicada como a de no. 3), estreada em 1886, ano da morte de Liszt e dedicada à sua memória. Conhecida como a “Sinfonia com Órgão”, sua composição já data dos anos pós-Napoleão III, deposto após a desastrosa derrota na Guerra Franco-Prussiana de 1871. Naquela época, a intelectualidade e o vanguardismo franceses já haviam voltado a brilhar, particularmente com o movimento impressionista e com o primeiro governo socialista da história, a Comuna de Paris. Saint-Saëns, entretanto, já na sua maturidade artística, não se mostrou disposto a aderir às novas tendências e, mais uma vez, encontrou no academicismo a sua forma de expressão. Questionado, após o sucesso da sua última sinfonia sobre o que estaria por vir, ele respondeu: “nada, nesta obra eu dei tudo o que podia”, talvez reconhecendo as suas próprias limitações em se adaptar a novos tempos.

A estrutura da obra é típica do classicismo vienense, embora com algumas modificações que seguem o princípio cíclico de Liszt: um tema que passa por variações nos quatro movimentos. No primeiro movimento, o tema principal é trabalhado pela orquestra em um crescendo contínuo; o contra-tema característico do classicismo vienense tem um papel secundário. O desenvolvimento da idéia musical é bastante refinado, assim como a brilhante trama orquestral e percebe-se a forte influência das formas estabelecidas por Haydn 150 anos antes. No segundo movimento, o tema principal assume um colorido quase litúrgico, graças, principalmente, às pontuações feitas pelo órgão que, no entanto, nunca assume papel de solista durante toda a obra. O terceiro movimento é um típico scherzo à moda de Beethoven, mas com dois pianos incluídos na orquestra que, assim como o órgão – que se mantém em silêncio durante o primeiro e terceiro movimentos – nunca assumem papel de solistas. No quarto movimento, que se inicia com um acorde majestoso no órgão, o desenvolvimento das idéias musicais se assemelha ao do primeiro movimento, com o colorido orquestral assumindo papel preponderante. O tema motivador de toda a sinfonia aparece como contra-tema e acaba se desenvolvendo mais do que o próprio tema principal do movimento, consolidando o caráter cíclico de uma das poucas sinfonias estruturadas à maneira clássica que foi composta longe de Viena e se mantém – merecidamente – como uma das mais conhecidas do repertório orquestral.