Minha mania de escrever não vem de hoje. Verificando umas pastas antigas aqui do computador, achei uns textos sobre música clássica que fiz em 2005 ou 2006 e resolvi compartilhar aqui, sem revisão, exatamente como foram escritos. O tema não tem nada a ver com Medicina, mas achei bobagem criar outro blog só para isso...
Saint-Saëns – Sinfonia no. 3 “Com Órgão”
Camille Saint-Saëns
Em seu livro “O
Mundo é Plano” (Objetiva, 2005), o jornalista Thomas L. Friedman divide a era
moderna em três grandes fases: a primeira teria se iniciado com o descobrimento
da América por Cristóvão Colombo; a última, iniciada com a queda do muro de
Berlim, se consolidou com a revolução digital que viria na década seguinte. A segunda,
embora o autor não tenha definido o seu início por um evento específico, pode
ser creditada a um personagem: Napoleão Bonaparte, ou Napoleão I, após ter se
proclamado Imperador da França. No mundo atual, de extrema rapidez de
informação, no qual valores aparentemente consolidados se tornam obsoletos da
noite para o dia, a extensão da influência de um único homem na civilização
ocidental parece quase fantasiosa, mas foi com o desequilíbrio da estrutura de
poder estabelecida nos séculos anteriores que ele se tornou o grande
responsável pela fascinante história moderna da Europa – particularmente da
França – que se caracterizou principalmente pela aceleração do desenvolvimento
tecnológico. Com as conquistas de impérios seculares pelo exército francês e,
principalmente, com a proibição das áreas sob influência napoleônica
(entenda-se, quase toda a Europa) de manter comércio com a Inglaterra através
do bloqueio continental, Napoleão desencadeou uma corrida por produtividade que
forçaria a abertura de novos mercados e novas áreas de influência, inaugurando
o imperialismo moderno, cujo apogeu se deu nos anos imediatamente anteriores à Primeira
Grande Guerra. Na França, após a queda de Napoleão, houve diversos lances na
busca pelo poder; finalmente, após a revolução de 1848, instalou-se a Segunda
República, para insatisfação da nobreza remanescente e, principalmente, da alta
burguesia, já que a França estava perdendo espaço na corrida imperialista para
a Prússia, Inglaterra e Império Austríaco. Assim, ainda nos anos de Segunda
República, os setores insatisfeitos da sociedade francesa se aproveitaram da
lenda em torno de Napoleão I para apoiar o então presidente da nação e seu
sobrinho Luís Napoleão Bonaparte a concentrar o poder e diminuir a importância
do legislativo. Em 1851, ele daria o golpe de estado, proclamaria o Segundo
Império Francês e se intitularia o seu Imperador sob a alcunha de Napoleão III,
dando início a mais um capítulo da conturbada história da França no século XIX.
Para aplacar as massas, o novo Imperador deu um novo rosto a Paris,
transformando-a na esplendorosa capital mundial que conhecemos hoje e, sob a
coordenação do Barão Haussmann, boa parte da cidade foi reconstruída,
tornando-se um modelo de urbanismo para o resto do mundo, com espaço para
largas avenidas e impressionantes construções, entre as quais se destacam, até
hoje, o Palais Garnier, sede da Ópera de Paris, e a Avenue des Champs Elyseés.
O outro lado da história foi a destruição da antiga capital intelectual da
Europa, com seus pequenos e aconchegantes cafés, residências e caves históricas dando lugar a obras que
acabavam, segundo alguns, tendendo para o colossal e para o mau gosto.
Paralelamente, a ascensão de Napoleão III trouxe novamente ao círculo do poder
a velha nobreza francesa remanescente da era sob domínio dos Bourbons e a nova
nobreza, ligada mais diretamente ao imperador ou à alta burguesia que o
sustentava, ambas com todos os vícios e frivolidades que mudariam – mais uma
vez – os costumes e o modo de expressão dos artistas gauleses. Boa parte da
intelectualidade que colocara Paris em destaque na primeira metade do século
foi posta em segundo plano e os artistas favoritos do “novo” sistema de governo
souberam produzir aquilo o que a elite queria consumir. Assim, enquanto na
literatura, os romances de Alexandre Dumas sucederam as obras de Victor Hugo,
na música, o fino romantismo de Chopin, Liszt e Berlioz, foi substituído pelas
operetas de Offenbach, pela “Grand Ópera” de Meyerbeer e pelos bailados de Adam
e Delibes, todos lembrados hoje muito mais pela sua posição histórica do que
pelo valor propriamente musical de suas obras.
Foi nesse
ambiente relativamente desfavorável aos artistas de maior profundidade que
viveu Camille Saint-Saëns (1835-1921). Considerado um prodígio ao piano – quando
criança chegou a ser comparado a Mozart – Saint-Saëns teve uma sólida formação
musical que o colocaria apto a criar uma tradição sinfônica autenticamente
francesa, o que acabou não se consolidando, tanto pelas circunstâncias
sócio-políticas pouco favoráveis, como pela personalidade conservadora do
compositor. Embora sua arte não tenha acompanhado os movimentos de transformação
da música erudita que ocorriam em Viena e na Alemanha, Saint-Saëns nem sempre
procurou compor deliberadamente para agradar ao grande público de Paris,
composto, como vimos, por uma nobreza frívola ou por uma elite econômica
inculta, e acabou por se esconder por trás de um academicismo muitas vezes
anacrônico e carente da autêntica expressão artística. Sua obra é marcada pela
irregularidade e pelo ecletismo: composições que foram recebidas com certa
frieza (como a ópera “Sansão e Dalila”) ou com vaias (como o poema sinfônico
“Dança Macabra”) são, hoje, as suas obras mais valorizadas, enquanto seus
sucessos em vida, como as peças para piano solo e concertos, estão fora do
repertório usual. Uma notável exceção foi a sua quinta e última sinfonia
(publicada como a de no. 3), estreada em 1886, ano da morte de Liszt e dedicada
à sua memória. Conhecida como a “Sinfonia com Órgão”, sua composição já data
dos anos pós-Napoleão III, deposto após a desastrosa derrota na Guerra
Franco-Prussiana de 1871. Naquela época, a intelectualidade e o vanguardismo
franceses já haviam voltado a brilhar, particularmente com o movimento
impressionista e com o primeiro governo socialista da história, a Comuna de
Paris. Saint-Saëns, entretanto, já na sua maturidade artística, não se mostrou
disposto a aderir às novas tendências e, mais uma vez, encontrou no
academicismo a sua forma de expressão. Questionado, após o sucesso da sua
última sinfonia sobre o que estaria por vir, ele respondeu: “nada, nesta obra
eu dei tudo o que podia”, talvez reconhecendo as suas próprias limitações em se
adaptar a novos tempos.
A estrutura da
obra é típica do classicismo vienense, embora com algumas modificações que
seguem o princípio cíclico de Liszt: um tema que passa por variações nos quatro
movimentos. No primeiro movimento, o tema principal é trabalhado pela orquestra
em um crescendo contínuo; o contra-tema característico do classicismo vienense
tem um papel secundário. O desenvolvimento da idéia musical é bastante
refinado, assim como a brilhante trama orquestral e percebe-se a forte
influência das formas estabelecidas por Haydn 150 anos antes. No segundo
movimento, o tema principal assume um colorido quase litúrgico, graças,
principalmente, às pontuações feitas pelo órgão que, no entanto, nunca assume
papel de solista durante toda a obra. O terceiro movimento é um típico scherzo à moda de Beethoven, mas com
dois pianos incluídos na orquestra que, assim como o órgão – que se mantém em silêncio
durante o primeiro e terceiro movimentos – nunca assumem papel de solistas. No
quarto movimento, que se inicia com um acorde majestoso no órgão, o
desenvolvimento das idéias musicais se assemelha ao do primeiro movimento, com
o colorido orquestral assumindo papel preponderante. O tema motivador de toda a
sinfonia aparece como contra-tema e acaba se desenvolvendo mais do que o
próprio tema principal do movimento, consolidando o caráter cíclico de uma das
poucas sinfonias estruturadas à maneira clássica que foi composta longe de
Viena e se mantém – merecidamente – como uma das mais conhecidas do repertório
orquestral.