Abaixo, mais um texto feito para as leitoras do Padecendo no Paraíso, complementando o artigo publicado na semana anterior.
O
ciclo vicioso de culpa e concessões
Na semana passada,
publicamos aqui um texto sobre as origens químicas da depressão e algumas
orientações básicas para lidar com quem sofre desse mal. A repercussão fez com
que nascesse uma síntese sobre as origens psicodinâmicas – ou comportamentais –
do humor deprimido, que divido aqui com vocês.
De uma maneira bem sintética, podemos dizer que TODOS os nossos relacionamentos estão baseados em um sistema de concessões. O exemplo mais claro é o da contratação de um serviço: você paga um determinado valor para um determinado profissional executar um trabalho (uma concessão, portanto) e, a partir de então, cria uma expectativa sobre o resultado daquele trabalho diante do dinheiro que pagou. Nos relacionamentos familiares, pessoais, conjugais e de trabalho, ocorre algo semelhante, porém sem o envolvimento de um valor tão absoluto como o do dinheiro. Para ficar em alguns exemplos, subordinados fazem concessões ao chefe visando uma promoção, maridos fazem concessões a esposas esperando satisfação de algum capricho sexual, filhos fazem programas chatos com os pais esperando alguma forma de recompensa, pais investem nos filhos esperando algum retorno ou reconhecimento. Enfim, qualquer que seja a base da relação, sempre haverá alguma forma de concessão que trará consigo alguma expectativa de um retorno à altura.
Entretanto, raramente isso acontece.
No verdadeiro tsunami de obrigações e compromissos que a sociedade ocidental se impôs, raramente alguém acha que está tendo um retorno adequado da concessão que está investindo. Maridos, esposas, pais, mães, filhos e amigos reclamam de esposas, maridos, filhos, pais, mães e amigos ingratos ou incompreensivos de uma maneira muito mais freqüente do que inicialmente seria de se esperar, diante da série de coisas que têm que “ceder” ao longo de um relacionamento.
A não correspondência de uma concessão feita, portanto, gera uma enorme frustração.
Todos nós passamos por
frustrações. Elas são, principalmente para as crianças, importantíssimas para a
formação da personalidade. Graças a elas, aprendemos a lidar com limites e com
impossibilidades ao longo da vida. Um bem que não pode ser adquirido, um amor
não correspondido, uma nota ruim na prova, uns quilinhos a mais na balança, são
exemplos de como vamos aprendendo que nem tudo é possível o tempo todo. O
sentimento que essas frustrações despertam é o que nos leva a querer
empreender, estudar mais, acordar mais cedo, malhar, comer melhor. Mas quando a
frustração é freqüente dentro de um determinado relacionamento, quando passamos
semanas, meses, ou mesmo anos, experimentando uma expectativa que não é
correspondida, começa a crescer um sentimento perigoso em nosso psiquismo
chamado ira. Ou raiva, fúria, ódio, como quiserem.
Mas aprendemos desde cedo
que não é bom cultivar esses sentimentos, certo?
Então, nosso psiquismo, num
instinto de sobrevivência moldado pela nossa cultura, transforma a maior parte
dessa ira em duas coisas: recalque e culpa.
Usando um conceito de
engenharia, recalque é o esmagamento do solo lá embaixo, na fundação, que traz
reflexos na parte visível da construção (o exemplo mais famoso é a Torre de
Pisa, que ficou torta por causa de um recalque). Traduzindo para a
psicodinâmica, é a tentativa de enterrar e esmagar nossos conflitos não
resolvidos que acaba tendo reflexos no nosso comportamento - quem nunca chamou
uma pessoa complicada de “recalcada”?
Entretanto, na maior parte
das pessoas, a maior parcela da ira gerada pelas frustrações diante das
concessões não correspondidas, se transforma mesmo em culpa, um sentimento
muito mais aceitável pela nossa cultura do que a raiva ou o ódio. O problema, é
que, para aliviar esse sentimento impreciso de culpa gerado pelas frustrações,
somos levados a fazer novas – e cada vez maiores – concessões, alimentando um
ciclo vicioso que muitas vezes gera um sentimento de incompreensão e desamparo,
mesmo quando tudo ao redor parece em ordem. Como dito antes, isso ocorre em
qualquer esfera de relacionamento, mas, na vida conjugal, onde a via de mão dupla
de concessões tende a ser mais intensa, a situação pode ficar crítica,
principalmente se houver um desequilíbrio de poder na relação. Romper esse
ciclo de concessões – frustrações – ira
– culpa – novas concessões é ferramenta fundamental para não desenvolver ou
cronificar um quadro depressivo. Ajudar quem caiu nessa armadilha a superar o
desafio de se libertar é uma das principais tarefas do psicoterapeuta.
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