"Pode ser que você ainda não tenha se dado conta disso, mas o fato é que todas as coisas belas do mundo são filhas da doença. O homem cria a beleza como remédio para o seu medo de morrer. Pessoas que gozam de saúde perfeita não criam nada. Se dependesse delas, o mundo seria uma mesmice chata. Por que haveriam de criar? A criação é o fruto do sofrimento" - Rubem Alves
Certa vez, um determinado laboratório estava promovendo seu medicamento, ao qual vamos chamar pelo nome fictício de "Deprimex", associando-o à figura de Van Gogh. Assim, a cada mês em que eu recebia a visita do representante, vinha junto uma reprodução de alguma obra do mestre holandês ou um livro sobre sua turbulenta biografia, sempre enfatizando o diagnóstico de transtorno bipolar do qual ele padecia. Até que, um dia, o pobre representante perdeu a chance de ficar calado:
- É, doutor, se já extstisse o Deprimex naquela época, o Van Gogh teria vivido bem melhor...
- Mas não seria o grande Van Gogh que conhecemos - foi o que consegui responder.
Auto-retrato de Vincent van Gogh (1887-88)
Vivemos em uma época de estranhas contradições. Em um mundo que, cada vez mais, apregoa a igualdade racial, inclusão social, defesa de minorias e tudo mais, nunca se viu tamanha "medicalização" da angústia inerente à existência humana, o que pode, em última análise, ser visto como uma contraditória intolerância com as diferenças - se alguém saiu do padrão esperado, certamente enquadra-se em alguma doença, segundo esse raciocínio.
Crianças agitadas são descuidadamente diagnosticadas como hiperativas, perdas e frustrações se tornam justificativa para tomar antidepressivos e qualquer rompante de mau-humor é suficiente para classificar o sujeito dentro do "espectro bipolar", isso para ficar apenas na área da psiquiatria.
Naturalmente, me refiro, nos exemplos acima, à medicina mal-feita, de consultas de 10-15 minutos a cada dois meses, que só se preocupa em tratar sintomas e nunca tem tempo para compreender a complexidade do momento vivido pelo indivíduo, mas, infelizmente, é a essa medicina que a grande maioria do público tem acesso e, diante da facilidade em passar um "remedinho" como resposta a sofrimentos
muitas vezes subjetivos, fica o alerta para uma perigosa tendência de
pasteurização de uma sociedade cada vez menos criativa - e,
naturalmente, mais angustiada.
Mas, ao contrário do que, eventualmente, possa parecer ao grande
público, a Medicina não é vilã nessa história. Se o infeliz exemplo do Deprimex
para resolver os problemas do Van Gogh pode ser visto como emblemático de um ponto de vista distorcido a respeito dessas excelentes ferramentas que são os psicotrópicos, deixo com os leitores um pequeno texto que escrevi em 2006 a respeito de um dos Concertos para Piano mais famosos da história, que, incidentalmente, cita como foi decisivo o papel de um médico na história do compositor.
Rachmaninov –
Concerto para Piano e Orquestra no. 2
Sergei Rachmaninov (1873-1943)
foi, possivelmente, o maior pianista do século XX. Formado no renomado
Conservatório de Moscou, soube captar de modo muito peculiar a tendência de
ocidentalização da música russa iniciada por Tchaikovsky, mas alcançando uma
estrutura formal e um equilíbrio estético raramente atingidos por aquele em
seus concertos e sinfonias. Sua vida foi marcada por sucessos internacionais
interrompidos por graves crises depressivas e terminada com rumores de suicídio
(na verdade, o compositor morreu de câncer de pulmão, na sua mansão em Beverly Hills , pouco
antes de completar setenta anos). Produziu freneticamente em alguns períodos e
praticamente se retirava da vida pública em outros. Seu concerto
para piano e orquestra no. 2 op. 18, um típico exemplo da produção do
romantismo tardio, data de 1901 e viria a se tornar a sua obra mais conhecida. A
história da produção desse concerto ilustra bem o que foi a vida do compositor:
já consagrado como virtuoso do piano, ele compõe sua primeira obra de grande
envergadura, a sinfonia no. 1, de 1897, que foi muito mal recebida pelo
público. Acometido por grave crise depressiva, ele queima a obra e se retira da
vida pública com fortes tendências suicidas. É tratado, então pelo psiquiatra
Dr. Nikolai Dahl que, com a técnica de hipnose e sugestionamento, convence Rachmaninov
a criar um novo concerto para piano. Animado com a nova empreitada, ele compõe
o seu Segundo Concerto de maneira febril e o sucesso dessa obra inaugura um
período de grande produtividade para o compositor que culminaria com o concerto
para piano no. 3 e o poema sinfônico “A Ilha dos Mortos”, ambos de 1909 e feitos
especialmente para uma turnê pelos EUA.
A melodia apaixonada do Segundo
Concerto, marcado pelo colorido fortemente eslavo e pela virtuosidade, é
contida em uma estrutura formal iniciada por Vivaldi ainda no alto barroco
italiano, porém bastante expandida. O primeiro movimento, o mais complexo e
desenvolvido, nos mostra uma seqüência de temas expostos de maneira rapsódica,
sem o típico desenvolvimento com antagonismos de tema e contra-tema que
marcaram a música erudita européia até o movimento impressionista. O solista
duela com a orquestra de maneira muito virtuosística com seqüências que beiram
os limites das possibilidades físicas para o pianista. O segundo movimento,
cheio de lirismo, quase uma reconciliação do piano com a orquestra, nos permite
perceber a típica construção melódica do compositor que, segundo vários críticos,
foi o grande inspirador (alguns dizem que foi mais do que isso) das melodias
dos clássicos de Hollywood. O terceiro movimento, mais leve do que o primeiro,
alterna um ritmo de dança com uma nova melodia de colorido eslavo que nos leva
a um finale emocionante nitidamente
inspirado em Tchaikovsky.
Poucos compositores tiveram uma
carreira dividida de maneira tão clara quanto Rachmaninov: após a Revolução Bolchevique
de 1917, ele se mudou definitivamente para os EUA e sua produção, embora sem
perder o colorido eslavo, passou a sofrer influências das harmonias do Jazz
(que também influenciaria a música erudita européia, particularmente a
francesa). As grandes obras desse período são a sinfonia no. 3 e o concerto
para piano no. 4, ambos datados dos anos 20; embora interessantes, soaram um
tanto inautênticas para muitos entusiastas e jamais repetiram o sucesso das
composições anteriores, talvez os últimos estertores do movimento romântico na
história das artes.
Sergei Rachmaninov
3 comentários:
Belíssimo texto, muito bem escrito. Parabéns, primo! Grande abraço pra você e sua família linda!
Obrigado, prima!
Mandou bem! Mais uma vez. Muito bom o exemplo da arte e a ilustração da sociedade.
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