Trata-se de uma pergunta bem mais freqüente do que se imagina, muitas vezes embaraçosa, dependendo do enfoque que é preciso dar para cada caso. O que se vê é que, até mesmo em função do pouco uso do conhecimento da medicina mais generalista, o especialista acaba se afastando de condutas que são rotineiras até mesmo para um estudante dos últimos anos, mas a essência da prática médica e o raciocínio clínico não o abandonam e muitas vezes o surpreendem. Talvez por isso, eu me apresente como Médico Psiquiatra, não apenas como Psiquiatra. O caso de hoje ilustra bem a questão.
Há pouco mais de três anos, uma paciente, a quem vamos chamar de Amanda, me procurou a pedido de uma amiga, que já era minha cliente. Ela não sabia exatamente a razão de ter marcado comigo, dizendo apenas que tinha uma sensação subjetiva de não estar se sentindo bem. Já havia passado em alguns médicos (um clínico, um ortopedista e na sua ginecologista) que não observaram nada de errado com ela.
Aqui, cabe uma pausa para descrever Amanda. Tinha 37 anos, era casada, mãe de dois filhos pequenos. De origem humilde, conseguiu fazer curso superior e, ao lado do marido, era uma empresária muito bem sucedida, estando em franca ascensão econômica e social. Começava a se envolver com o mundo dos vinhos sofisticados e da alta costura, mas sem afetações. Não tinha queixas da vida. Alta, esguia e dona de um belo par de olhos azuis, era difícil entender seu ponto de vista de que algo não parecia estar bem.
"Uma somatizadora", foi a primeira idéia (somatizador, basicamente, é o paciente que transforma conflitos psíquicos em sintomas físicos nem sempre justificáveis por exames clínicos objetivos), mas seu discurso, sua postura diante dos problemas que eu colocava para pensarmos, não corroboravam essa hipótese que, mesmo assim, ficou pairando em meu imaginário por algum tempo. Enfim, ao final da primeira consulta, eu lhe disse que não fazia idéia do que estava errado com ela, mas lhe convidei a marcar um novo horário e ela aceitou, completando que talvez a resposta estivesse em uma psicoterapia.
E assim foi.
No decorrer das quatro ou cinco consultas subsequentes, em um intervalo de cerca de dois meses, ela relatava uma sensação subjetiva de melhora; trabalhava e cuidava da família normalmente, coisa que, aliás, nunca deixara de fazer. Não havia qualquer sinal de depressão. Faltava, no entanto, alguma consistência que eu não conseguia captar, até que ela descreveu uma cena interessante.
Em um dia qualquer, Amanda percebeu que estava evitando brincar com os filhos assentada no chão por causa de uma dor lombar que não melhorava e, muitas vezes, se agudizava a ponto de obrigá-la interromper o que estivesse fazendo. Disse isso de maneira absolutamente casual, pois não entendia essa dor como um sintoma digno de ser relatado, atribuindo-a ao sedentarismo ou a um colchão inadequado; mas, na consulta subseqüente, a dor lombar ganhou importância. Em outra ocasião, começamos a falar de família e filhos. Ela considerava que sua família já estava completa e que tentava convencer o marido a fazer vasectomia.
"- E como vocês estão evitando filhos?" - perguntei.
"- Tentei usar o Mirena, mas não me adaptei por causa de hemorragias. Me adaptei melhor ao Implanon."
Tanto o Mirena quanto o Implanon são estruturas introduzidas no corpo da mulher (o Mirena é um tipo de DIU e o Implanon é um pequeno bastão subcutâneo) que liberam hormônios sintéticos semelhantes à progesterona para evitar a gravidez.
A charada estava morta!
Passamos a nos concentrar na dor lombar e,quando eu lhe perguntei se ela havia sentido algo semelhante nas gestações, ela deu um pulo da cadeira:
- A dor é idêntica!
- E essa sensação subjetiva de desânimo e de que algo está errado? - arrisquei.
- Também!
Expliquei para a Amanda que, do ponto de vista funcional do organismo, ela estava grávida, já que a liberação contínua de progesterona é exatamente o que ocorre na gestação; só não havia o feto. A progesterona pode provocar indisposição nas mulheres e relaxamento dos ligamentos próximos ao quadril para aumentar o espaço para o útero crescer; esse afrouxamento pode provocar até dores incapacitantes em algumas grávidas.
A solução para o problema da Amanda, obviamente, não estava mais em um consultório psiquiátrico; orientada a retirar o Implanon, ela enfrentou alguma resistência da sua ginecologista, mas, menos de uma semana depois de ser ver livre da progesterona sintética, as dores e o desânimo desapareceram completamente.
Amanda teve alta da psiquiatria depois de cerca de três meses desde a sua primeira consulta, sendo que o conhecimento psiquiátrico aqui foi o de menor importância.
Esse raciocínio descrito acima não tem nada de espetacular. Trata-se do be-a-bá da rotina de qualquer estudante do quinto ano quando todos os dados estão à mão. O problema é que, muitas vezes, não estão, e o trabalho do médico é o de montar um quebra-cabeça que parece sem todas as peças. O cliente, que não tem a menor obrigação de saber quais peças são mais importantes, vai fornecendo ao profissional atento as pistas para desvendar o problema, mas a pressa, o preconceito e a necessidade de "enquadrar" o paciente em um raciocínio pré-estabelecido (imagine o tamanho do prejuízo se ela fosse tratada como "somatizadora") podem fazer com que essas peças se percam para sempre.
Parafraseando uma frase batida, o especialista pode até se afastar da medicina geral, mas a Medicina nunca se afasta do bom especialista. E a essência da boa Medicina ainda está em entender o universo do paciente em toda a sua complexidade; a solução para certas questões pode ser bem mais simples do que se imagina.
Tanto o Mirena quanto o Implanon são estruturas introduzidas no corpo da mulher (o Mirena é um tipo de DIU e o Implanon é um pequeno bastão subcutâneo) que liberam hormônios sintéticos semelhantes à progesterona para evitar a gravidez.
A charada estava morta!
Passamos a nos concentrar na dor lombar e,quando eu lhe perguntei se ela havia sentido algo semelhante nas gestações, ela deu um pulo da cadeira:
- A dor é idêntica!
- E essa sensação subjetiva de desânimo e de que algo está errado? - arrisquei.
- Também!
Expliquei para a Amanda que, do ponto de vista funcional do organismo, ela estava grávida, já que a liberação contínua de progesterona é exatamente o que ocorre na gestação; só não havia o feto. A progesterona pode provocar indisposição nas mulheres e relaxamento dos ligamentos próximos ao quadril para aumentar o espaço para o útero crescer; esse afrouxamento pode provocar até dores incapacitantes em algumas grávidas.
A solução para o problema da Amanda, obviamente, não estava mais em um consultório psiquiátrico; orientada a retirar o Implanon, ela enfrentou alguma resistência da sua ginecologista, mas, menos de uma semana depois de ser ver livre da progesterona sintética, as dores e o desânimo desapareceram completamente.
Amanda teve alta da psiquiatria depois de cerca de três meses desde a sua primeira consulta, sendo que o conhecimento psiquiátrico aqui foi o de menor importância.
Esse raciocínio descrito acima não tem nada de espetacular. Trata-se do be-a-bá da rotina de qualquer estudante do quinto ano quando todos os dados estão à mão. O problema é que, muitas vezes, não estão, e o trabalho do médico é o de montar um quebra-cabeça que parece sem todas as peças. O cliente, que não tem a menor obrigação de saber quais peças são mais importantes, vai fornecendo ao profissional atento as pistas para desvendar o problema, mas a pressa, o preconceito e a necessidade de "enquadrar" o paciente em um raciocínio pré-estabelecido (imagine o tamanho do prejuízo se ela fosse tratada como "somatizadora") podem fazer com que essas peças se percam para sempre.
Parafraseando uma frase batida, o especialista pode até se afastar da medicina geral, mas a Medicina nunca se afasta do bom especialista. E a essência da boa Medicina ainda está em entender o universo do paciente em toda a sua complexidade; a solução para certas questões pode ser bem mais simples do que se imagina.
11 comentários:
Sempre bom ler seus textos. Vou gostar de ler agora sobre assuntos alheios a carros!
Obrigado, Chico, vamos ver se esse projeto decola!
Muito bom!! Bom mesmo, meu caro Sherlock!!
Pode até ser um caso comum de um estudante no quinto ano de medicina!!
Mas como não é o meu caso, fiquei empolgado com o final da história...
Hehehehe, então leia a próxima e veja um desfecho bem deferente...
Muito bom, Dr. Luis...
Luís, radiologista é primo primeiro do psiquiatra...também não é médico não... Aliás, só fazemos "rauX"o dia todo!É duro,não?!
Adorei os textos!Parabéns!
Paulinha Santiago
Obrigado, Paulinha!
Vendedores de remédios que acabaram com 10 anos da minha vida!!!! Não passam de repassadores das ideias da industria farmacêutica, nos enchem de remédios sem nenhuma comprovação científica alguma. Ainda querem ter a alcunha de médicos.
Uma vergonha.
Por enquanto cabe a vocês isolar, o triste, o rejeitado, o mal entendido, com suas drogas para fazer dormir, para fazer a alma adormecer. Porém...
Cabe a história dizer quem são vocês!!!
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/e-ela-vivia-me-agradecendo-por-te-la-ensinado-a-gozar-com-penetracao/
Enfim, psiquiatra é médico ou não?
Menos. Todos os remédios aprovados tem eficácia comprovada por diversos pesquisadores. Entendo sua angústia. Nem sempre resolve todos os casos. Mas nenhum remédio aliás seja psiquiátrico ou não resolve tudo. Mas nenhum psiquiatra vai te ajudar se vc não quiser se ajudar. Vc tomou os remédios na dose certa todos os dias? Vc voltou a consulta para dar feedback?
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