segunda-feira, 3 de abril de 2017

O CICLO VICIOSO DE CULPA E CONCESSÕES

Abaixo, mais um texto feito para as leitoras do Padecendo no Paraíso, complementando o artigo publicado na semana anterior.

O ciclo vicioso de culpa e concessões

Na semana passada, publicamos aqui um texto sobre as origens químicas da depressão e algumas orientações básicas para lidar com quem sofre desse mal. A repercussão fez com que nascesse uma síntese sobre as origens psicodinâmicas – ou comportamentais – do humor deprimido, que divido aqui com vocês.


De uma maneira bem sintética, podemos dizer que TODOS            os nossos relacionamentos estão baseados em um sistema de concessões. O exemplo mais claro é o da contratação de um serviço: você paga um determinado valor para um determinado profissional executar um trabalho (uma concessão, portanto) e, a partir de então, cria uma expectativa sobre o resultado daquele trabalho diante do dinheiro que pagou. Nos relacionamentos familiares, pessoais, conjugais e de trabalho, ocorre algo semelhante, porém sem o envolvimento de um valor tão absoluto como o do dinheiro. Para ficar em alguns exemplos, subordinados fazem concessões ao chefe visando uma promoção, maridos fazem concessões a esposas esperando satisfação de algum capricho sexual, filhos fazem programas chatos com os pais esperando alguma forma de recompensa, pais investem nos filhos esperando algum retorno ou reconhecimento. Enfim, qualquer que seja a base da relação, sempre haverá alguma forma de concessão que trará consigo alguma expectativa de um retorno à altura.
Entretanto, raramente isso acontece.
No verdadeiro tsunami de obrigações e compromissos que a sociedade ocidental se impôs, raramente alguém acha que está tendo um retorno adequado da concessão que está investindo. Maridos, esposas, pais, mães, filhos e amigos reclamam de esposas, maridos, filhos, pais, mães e amigos ingratos ou incompreensivos de uma maneira muito mais freqüente do que inicialmente seria de se esperar, diante da série de coisas que têm que “ceder” ao longo de um relacionamento.
A não correspondência de uma concessão feita, portanto, gera uma enorme frustração.




Todos nós passamos por frustrações. Elas são, principalmente para as crianças, importantíssimas para a formação da personalidade. Graças a elas, aprendemos a lidar com limites e com impossibilidades ao longo da vida. Um bem que não pode ser adquirido, um amor não correspondido, uma nota ruim na prova, uns quilinhos a mais na balança, são exemplos de como vamos aprendendo que nem tudo é possível o tempo todo. O sentimento que essas frustrações despertam é o que nos leva a querer empreender, estudar mais, acordar mais cedo, malhar, comer melhor. Mas quando a frustração é freqüente dentro de um determinado relacionamento, quando passamos semanas, meses, ou mesmo anos, experimentando uma expectativa que não é correspondida, começa a crescer um sentimento perigoso em nosso psiquismo chamado ira. Ou raiva, fúria, ódio, como quiserem.

Mas aprendemos desde cedo que não é bom cultivar esses sentimentos, certo?

Então, nosso psiquismo, num instinto de sobrevivência moldado pela nossa cultura, transforma a maior parte dessa ira em duas coisas: recalque e culpa.

Usando um conceito de engenharia, recalque é o esmagamento do solo lá embaixo, na fundação, que traz reflexos na parte visível da construção (o exemplo mais famoso é a Torre de Pisa, que ficou torta por causa de um recalque). Traduzindo para a psicodinâmica, é a tentativa de enterrar e esmagar nossos conflitos não resolvidos que acaba tendo reflexos no nosso comportamento - quem nunca chamou uma pessoa complicada de “recalcada”?

Entretanto, na maior parte das pessoas, a maior parcela da ira gerada pelas frustrações diante das concessões não correspondidas, se transforma mesmo em culpa, um sentimento muito mais aceitável pela nossa cultura do que a raiva ou o ódio. O problema, é que, para aliviar esse sentimento impreciso de culpa gerado pelas frustrações, somos levados a fazer novas – e cada vez maiores – concessões, alimentando um ciclo vicioso que muitas vezes gera um sentimento de incompreensão e desamparo, mesmo quando tudo ao redor parece em ordem. Como dito antes, isso ocorre em qualquer esfera de relacionamento, mas, na vida conjugal, onde a via de mão dupla de concessões tende a ser mais intensa, a situação pode ficar crítica, principalmente se houver um desequilíbrio de poder na relação. Romper esse ciclo de concessões – frustrações – ira – culpa – novas concessões é ferramenta fundamental para não desenvolver ou cronificar um quadro depressivo. Ajudar quem caiu nessa armadilha a superar o desafio de se libertar é uma das principais tarefas do psicoterapeuta.




quarta-feira, 22 de março de 2017

CONSIDERAÇÕES SOBRE DEPRESSÃO

A pedido da Bebel Soares, editora do Padecendo no Paraíso, escrevi o texto abaixo, direcionado ao público leigo, publicado em 20/3/17 com ótima repercussão entre as leitoras


COMO LIDAR COM UMA PESSOA DEPRIMIDA

“Eu não consigo explicar meus sentimentos para você; existe um certo vazio que me causa dor, um desejo nunca satisfeito e que, no entanto, nunca cessa, mas aumenta dia após dia... Eu tampouco encontro alegria no meu trabalho... Se eu sento ao piano e canto algo da minha ópera, tenho que parar imediatamente, pois me afeta muito.”
Carta de Wolfgang Amadeus Mozart à esposa, julho de 1791

“Acordei a noite toda ontem de novo. Às vezes, eu penso para que serve a noite. Ela quase não existe para mim – tudo parece um longo, longo e horrível dia”
Carta de Marilyn Monroe ao seu psiquiatra, agosto de 1961

Os dois relatos históricos acima, registrados por duas figuras tão associadas à beleza e à magia das artes, dão a dimensão da devastação causada por uma doença pouco compreendida e ainda cercada de preconceitos e banalizações: o transtorno depressivo. Nos próximos parágrafos, vamos tentar esclarecer alguns pontos sobre o sofrimento de quem tem depressão e derrubar alguns mitos que, infelizmente, ainda a cercam.

Serem humanos se alegram e se entristecem o tempo todo, na maioria das vezes com uma conexão bastante clara com o ambiente que os cerca. Pessoas apaixonadas, que receberam uma promoção no trabalho, que compraram uma casa nova ou que viram o nascimento de um filho tendem a se sentir muito alegres, enquanto quem está com dívidas, crise no relacionamento ou tem problemas com os filhos tendem a se sentir mais tristes ou irritadas do que o normal. Tais fenômenos são perfeitamente compreensíveis e muito necessários para o nosso aprendizado – de um modo geral, vamos querer repetir as experiências que nos deixaram alegres e evitar as que nos deixaram tristes.

Entretanto, nosso humor também varia sem uma conexão clara com os estímulos ambientais. Não chega a ser raro estarmos incompreensivelmente alegres (“fulano viu um passarinho verde hoje”) ou chateados (“sicrano acordou com o pé esquerdo hoje”). Essas oscilações do humor, dentro de uma determinada faixa de normalidade, é o ciclo habitual do nosso psiquismo e um dos determinantes das características da personalidade das pessoas (expansiva, introspectiva, debochada, melancólica, etc). A nossa percepção das variações de humor se deve a oscilações na produção de substâncias no nosso cérebro - as monoaminas.

Até aqui, falamos de situações normais e de características encontradas em qualquer pessoa, de maneira mais ou menos evidente aos olhos de um psiquiatra. Quando essas oscilações do humor se tornam exageradas (alegria, coragem ou irritação desproporcionais ao estímulo ambiental ou tristeza, melancolia e sensação de ruína também sem uma justificativa compreensível), temos um quadro denominado Transtorno Bipolar, tema para um futuro artigo para as Padecentes.

Entretanto, quando o humor fica permanentemente triste, quando a pessoa vai perdendo o prazer e o interesse por coisas que anteriormente achava divertidas, e, principalmente, quando ela se fecha em um universo de dor e falta de esperança, é hora de olhar com atenção se não é o caso de se pensar em depressão.

Em linhas gerais, a depressão é causada pela deficiência da produção de substâncias no nosso sistema nervoso chamadas monoaminas. Dessas, as mais conhecidas são a serotonina e noradrenalina, cuja falta determina a falta de alegria, prazer e energia tão característicos de quem sofre de depressão. Lavar uma pia de louças, arrumar uma pilha de papéis ou mesmo dar uma volta no quarteirão com o cachorro se tornam tarefas extremamente penosas e sem sentido para quem tem a produção das monoaminas reduzida. Essa redução é determinada geneticamente e, dependendo da carga genética, pode aparecer em qualquer época da vida, não necessariamente relacionada a algum evento traumático, embora um evento traumático possa desencadear ou mesmo agravar um quadro depressivo que, sem esse trauma, talvez não ocorresse ou ocorresse de maneira bem mais branda. Ainda há de se considerar que é a carga genética uma das grandes responsáveis pela maneira tão diferente que as pessoas reagem a um trauma. Uma perda de emprego ou o fim de um relacionamento, por exemplo, podem ser um gatilho importante para a baixa permanente dessas monoaminas em quem tem predisposição genética, enquanto determinam apenas uma alteração efêmera do humor em quem não tem essa predisposição e que, após alguns dias, se recupera e segue sua vida normalmente. É importante frisar aqui que não se trata de “fraqueza de personalidade” ou “falta de vergonha” quando alguém que sofre de depressão não consegue lidar com a adversidade. Pedir para um deprimido reagir como uma pessoa normal (ou “eutímica”, como se diz em psiquiatria) a um problema que o aflige, é como pedir a um daltônico que diferencie certas cores ou que um diabético controle sua glicose com base na força de vontade.

Os antidepressivos, de um modo geral, atuam buscando a otimização da produção dessas monoaminas.

Esclarecidas as origens da depressão, passamos à questão mais importante: como lidar com uma pessoa deprimida? E quando os deprimidos somos nós mesmos, o que fazer?
A primeira e mais absoluta das regras é tão obvia que acaba sendo esquecida: 

NÃO JULGAR A SITUAÇÃO SOB O PONTO DE VISTA DE QUEM NÃO É DEPRIMIDO. 

É extremamente comum ouvir relatos do tipo “mas você é uma pessoa tão bonita” ou “não te falta nada” ou “olhe para sua família” ou “tenha mais fé” ou, o pior de todos “você precisa reagir”. Todas essas tentativas de ajudar só pioram a sensação de isolamento e incompreensão que atormenta quem sofre de depressão, além de reforçaram a sensação de incompetência e inadequação que acompanha essas pessoas.
A segunda regra, também de ouro é: 

OUÇA E ACOLHA O SOFRIMENTO DE QUEM PEDE SOCORRO. 

Admitir que está deprimido, principalmente para quem está enfrentando a doença pela primeira vez, é dificílimo, pois não há um exame laboratorial ou qualquer outro parâmetro, além da própria percepção de que não está bem. Muitas vezes, apenas dividir o sofrimento com alguém, já é enorme alivio para quem sente o desamparo que a depressão causa. Não se preocupe em apresentar uma solução ou um caminho! Como diz a música “Sutilmente”, do Skank, “... E quando eu estiver triste, simplesmente me abrace”.
A terceira regra, que determinará como (e se) a pessoa vai sair de um episódio depressivo, é:

NÃO BANALIZAR O TRATAMENTO. 

Os antidepressivos foram, até os anos 80, drogas de difícil manejo por causa dos efeitos colaterais. Com a descoberta da fluoxetina e dos outros antidepressivos serotoninérgicos (paroxetina, sertralina, citalopram, escitalopram, fluvoxamina), a prescrição dessas drogas passou a ser feita sem muito critério, muitas vezes em “consultas de corredor” ou até mesmo por amigos e parentes que, na tentativa de ajudar, passam antidepressivos de maneira pouco cuidadosa, sem uma compreensão mais profunda do sofrimento de quem precisa de ajuda, tendendo a cronificar o problema e a jogar fora uma ótima ferramenta de tratamento.
A quarta e última regra é:

SABER QUE RECAÍDAS OCORRERÃO AO LONGO DA VIDA DO DEPRIMIDO. São comuns os casos em que a pessoa cumpre um protocolo de tratamento com antidepressivo (entre seis e oito meses de remissão dos sintomas), retira a medicação e ganha alta do psiquiatra, ficando o retorno em aberto para quando precisar. Esse retorno pode ocorrer depois de alguns meses ou depois de vários anos, mas não é raro a pessoa precisar de um novo ciclo de tratamento com antidepressivos para encarar uma eventual recaída.


Então, compreendidas as regras básicas de como lidar com uma pessoa em episódio depressivo, falta falar sobre como prevenir e enfrentar as turbulências que, naturalmente, virão. Buscar situações prazerosas, valorizar o que realmente importa na vida, não se prender em relacionamentos doentios, tanto na vida afetiva quanto na vida profissional e familiar, ter planos, defender idéias, criar, realizar... sim, isso é possível para quem sofre de depressão e busca tratamento! Além da parte química, com antidepressivos sempre que necessários, uma boa psicoterapia pode ajudar muito a enfrentar uma das mais terríveis formas de sofrimento de que temos conhecimento. Procure um profissional bem recomendado sempre que achar necessário.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

FRAGMENTOS DE UM PASSADO REMOTO (I)

Minha mania de escrever não vem de hoje. Verificando umas pastas antigas aqui do computador, achei uns textos sobre música clássica que fiz em 2005 ou 2006 e resolvi compartilhar aqui, sem revisão, exatamente como foram escritos. O tema não tem nada a ver com Medicina, mas achei bobagem criar outro blog só para isso...


Saint-Saëns – Sinfonia no. 3 “Com Órgão”



Camille Saint-Saëns



Em seu livro “O Mundo é Plano” (Objetiva, 2005), o jornalista Thomas L. Friedman divide a era moderna em três grandes fases: a primeira teria se iniciado com o descobrimento da América por Cristóvão Colombo; a última, iniciada com a queda do muro de Berlim, se consolidou com a revolução digital que viria na década seguinte. A segunda, embora o autor não tenha definido o seu início por um evento específico, pode ser creditada a um personagem: Napoleão Bonaparte, ou Napoleão I, após ter se proclamado Imperador da França. No mundo atual, de extrema rapidez de informação, no qual valores aparentemente consolidados se tornam obsoletos da noite para o dia, a extensão da influência de um único homem na civilização ocidental parece quase fantasiosa, mas foi com o desequilíbrio da estrutura de poder estabelecida nos séculos anteriores que ele se tornou o grande responsável pela fascinante história moderna da Europa – particularmente da França – que se caracterizou principalmente pela aceleração do desenvolvimento tecnológico. Com as conquistas de impérios seculares pelo exército francês e, principalmente, com a proibição das áreas sob influência napoleônica (entenda-se, quase toda a Europa) de manter comércio com a Inglaterra através do bloqueio continental, Napoleão desencadeou uma corrida por produtividade que forçaria a abertura de novos mercados e novas áreas de influência, inaugurando o imperialismo moderno, cujo apogeu se deu nos anos imediatamente anteriores à Primeira Grande Guerra. Na França, após a queda de Napoleão, houve diversos lances na busca pelo poder; finalmente, após a revolução de 1848, instalou-se a Segunda República, para insatisfação da nobreza remanescente e, principalmente, da alta burguesia, já que a França estava perdendo espaço na corrida imperialista para a Prússia, Inglaterra e Império Austríaco. Assim, ainda nos anos de Segunda República, os setores insatisfeitos da sociedade francesa se aproveitaram da lenda em torno de Napoleão I para apoiar o então presidente da nação e seu sobrinho Luís Napoleão Bonaparte a concentrar o poder e diminuir a importância do legislativo. Em 1851, ele daria o golpe de estado, proclamaria o Segundo Império Francês e se intitularia o seu Imperador sob a alcunha de Napoleão III, dando início a mais um capítulo da conturbada história da França no século XIX. Para aplacar as massas, o novo Imperador deu um novo rosto a Paris, transformando-a na esplendorosa capital mundial que conhecemos hoje e, sob a coordenação do Barão Haussmann, boa parte da cidade foi reconstruída, tornando-se um modelo de urbanismo para o resto do mundo, com espaço para largas avenidas e impressionantes construções, entre as quais se destacam, até hoje, o Palais Garnier, sede da Ópera de Paris, e a Avenue des Champs Elyseés. O outro lado da história foi a destruição da antiga capital intelectual da Europa, com seus pequenos e aconchegantes cafés, residências e caves históricas dando lugar a obras que acabavam, segundo alguns, tendendo para o colossal e para o mau gosto. Paralelamente, a ascensão de Napoleão III trouxe novamente ao círculo do poder a velha nobreza francesa remanescente da era sob domínio dos Bourbons e a nova nobreza, ligada mais diretamente ao imperador ou à alta burguesia que o sustentava, ambas com todos os vícios e frivolidades que mudariam – mais uma vez – os costumes e o modo de expressão dos artistas gauleses. Boa parte da intelectualidade que colocara Paris em destaque na primeira metade do século foi posta em segundo plano e os artistas favoritos do “novo” sistema de governo souberam produzir aquilo o que a elite queria consumir. Assim, enquanto na literatura, os romances de Alexandre Dumas sucederam as obras de Victor Hugo, na música, o fino romantismo de Chopin, Liszt e Berlioz, foi substituído pelas operetas de Offenbach, pela “Grand Ópera” de Meyerbeer e pelos bailados de Adam e Delibes, todos lembrados hoje muito mais pela sua posição histórica do que pelo valor propriamente musical de suas obras.
Foi nesse ambiente relativamente desfavorável aos artistas de maior profundidade que viveu Camille Saint-Saëns (1835-1921). Considerado um prodígio ao piano – quando criança chegou a ser comparado a Mozart – Saint-Saëns teve uma sólida formação musical que o colocaria apto a criar uma tradição sinfônica autenticamente francesa, o que acabou não se consolidando, tanto pelas circunstâncias sócio-políticas pouco favoráveis, como pela personalidade conservadora do compositor. Embora sua arte não tenha acompanhado os movimentos de transformação da música erudita que ocorriam em Viena e na Alemanha, Saint-Saëns nem sempre procurou compor deliberadamente para agradar ao grande público de Paris, composto, como vimos, por uma nobreza frívola ou por uma elite econômica inculta, e acabou por se esconder por trás de um academicismo muitas vezes anacrônico e carente da autêntica expressão artística. Sua obra é marcada pela irregularidade e pelo ecletismo: composições que foram recebidas com certa frieza (como a ópera “Sansão e Dalila”) ou com vaias (como o poema sinfônico “Dança Macabra”) são, hoje, as suas obras mais valorizadas, enquanto seus sucessos em vida, como as peças para piano solo e concertos, estão fora do repertório usual. Uma notável exceção foi a sua quinta e última sinfonia (publicada como a de no. 3), estreada em 1886, ano da morte de Liszt e dedicada à sua memória. Conhecida como a “Sinfonia com Órgão”, sua composição já data dos anos pós-Napoleão III, deposto após a desastrosa derrota na Guerra Franco-Prussiana de 1871. Naquela época, a intelectualidade e o vanguardismo franceses já haviam voltado a brilhar, particularmente com o movimento impressionista e com o primeiro governo socialista da história, a Comuna de Paris. Saint-Saëns, entretanto, já na sua maturidade artística, não se mostrou disposto a aderir às novas tendências e, mais uma vez, encontrou no academicismo a sua forma de expressão. Questionado, após o sucesso da sua última sinfonia sobre o que estaria por vir, ele respondeu: “nada, nesta obra eu dei tudo o que podia”, talvez reconhecendo as suas próprias limitações em se adaptar a novos tempos.

A estrutura da obra é típica do classicismo vienense, embora com algumas modificações que seguem o princípio cíclico de Liszt: um tema que passa por variações nos quatro movimentos. No primeiro movimento, o tema principal é trabalhado pela orquestra em um crescendo contínuo; o contra-tema característico do classicismo vienense tem um papel secundário. O desenvolvimento da idéia musical é bastante refinado, assim como a brilhante trama orquestral e percebe-se a forte influência das formas estabelecidas por Haydn 150 anos antes. No segundo movimento, o tema principal assume um colorido quase litúrgico, graças, principalmente, às pontuações feitas pelo órgão que, no entanto, nunca assume papel de solista durante toda a obra. O terceiro movimento é um típico scherzo à moda de Beethoven, mas com dois pianos incluídos na orquestra que, assim como o órgão – que se mantém em silêncio durante o primeiro e terceiro movimentos – nunca assumem papel de solistas. No quarto movimento, que se inicia com um acorde majestoso no órgão, o desenvolvimento das idéias musicais se assemelha ao do primeiro movimento, com o colorido orquestral assumindo papel preponderante. O tema motivador de toda a sinfonia aparece como contra-tema e acaba se desenvolvendo mais do que o próprio tema principal do movimento, consolidando o caráter cíclico de uma das poucas sinfonias estruturadas à maneira clássica que foi composta longe de Viena e se mantém – merecidamente – como uma das mais conhecidas do repertório orquestral.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

PRECONCEITO X DISCRIMINAÇÃO

Com alguns meses de "delay", publico um texto que escrevi a pedido do grupo Padecendo no Paraíso, por ocasião de um comportamento discriminatório ocorrido contra uma aluna de um colégio particular da zona sul de Belo Horizonte - onde, aliás, havíamos cogitado matricular nossos filhos...

Preconceito x Discriminação


- Muçulmanos são fanáticos religiosos
- Judeus são mesquinhos
- Alemães são racistas
- Ingleses são frios
- Franceses são arrogantes
- Latinos são desonestos
- Americanos são ignorantes


Quem nunca ouviu pelo menos uma - senão todas - das afirmativas acima ao menos uma vez na vida? Em quê se baseiam? Por que o ser humano é tão preconceituoso?

A pedido da minha esposa, Júlia, mãe dos meus pequenos Felipe e André - esse último portador de diabetes tipo 1 - vou tentar discorrer um pouco sobre as origens e desdobramentos dessa nossa característica ao mesmo tempo tão nociva e tão necessária para a sobrevivência desde os primórdios da humanidade.

Antes de começar, me permitam uma breve apresentação. Sou médico formado pela UFMG em 2000 com residência em psiquiatria pelo HC-UFMG. Já passei pela psiquiatria clínica pelo SUS em nível ambulatorial e hospitalar, assim como pela docência em algumas faculdades privadas, pelas perícias cível e criminal e pela medicina privada e de planos de saúde, também em níveis ambulatorial e hospitalar. Posso dizer, com muita segurança, que um dos maiores desafios para o psiquiatra, além do diagnóstico e tratamento correto das enfermidades psíquicas, é o de ajudar o cliente que o procura a vencer preconceitos que vão sendo criados e cultivados junto com a formação da sua personalidade.
Preconceito pode ser definido, de uma maneira geral, como uma idéia preconcebida a respeito de uma pessoa (ou grupo de pessoas), lugares ou objetos. Trata-se, portanto, de uma avaliação prévia, muitas vezes sem um embasamento concreto, que tenderá a definir uma conduta a respeito da pessoa, lugar ou objeto avaliado.
Antes que se diga que preconceito é sempre ruim (o que seria, em si mesmo, um preconceito!), é bom deixar claro que se trata de um instrumento de sobrevivência. Uma bela jovem evita passar por lugares ermos à noite porque ela já carrega, desde menina, a idéia de que esses lugares são perigosos. Crianças evitam abordagens de estranhos porque carregam a idéia preconcebida, incutida pelos pais, de que estranhos são malfeitores em potencial. Se alguém vir uma pessoa com uma suástica tatuada no braço, certamente fará um juízo a respeito do caráter dessa pessoa e evitará o contato com ela. Portanto, preconceito é um termo amplo e muito abrangente. Estamos exercendo preconceitos o tempo todo, até porque o nosso psiquismo não teria como processar cada estímulo que aparece a todo instante e só fazer um juízo a respeito desses estímulo depois de uma longa deliberação.
O problema maior é quando o preconceito determina atitudes discriminatórias injustas, baseadas em idéias falsas, muitas vezes disseminadas por ignorância ou para que o indivíduo encubra seus próprios medos e fantasmas.
Voltando aos exemplos de maus preconceitos enumerados no início deste texto, a respeito de alguns povos e religiões, eles são fruto de ignorância e, via de regra, as idéias preconcebidas tendem a ser corrigidas quando a pessoa é colocada em contato com aquele grupo; de um modo geral, não causam maiores danos.
Para falarmos, no entanto, das idéias discriminatórias que nascem da parte mais sombria do nosso psiquismo, consideremos que todo ser humano tem um ideal de beleza e perfeição (“Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança”, segundo a Bíblia) e um dos seus medos mais secretos é o de não corresponder a esse ideal. Assim, na formação de nossa personalidade, nos deparamos constantemente com limites físicos ou estéticos que tentamos esconder o máximo possível. Quem nunca desejou ser um pouco mais alto, um pouco mais magro, um pouco mais forte, ter melhor desempenho nos esportes, ser objeto de desejo sexual, ter os filhos mais bonitos, inteligentes e educados da face da Terra?
Quando nos deparamos com alguém que foge a essa estética imposta por séculos e séculos de civilização, tendemos a nos sentir incomodados porque essas pessoas nos lembram de nossos próprios fantasmas, limites e imperfeições, segundo um conceito moral nem sempre verdadeiro. Uma parada gay, por exemplo, lembra aos heterossexuais que eles têm um aspecto homossexual na formação de suas personalidades que gostariam de esquecer. Um obeso tende a lembrar a muitos não obesos que eles comem mal e se exercitam menos do que gostariam. Uma criança com algum tipo de deficiência lembra aos outros pais que pode ser que seus filhos não sejam assim tão perfeitos. Enfim, quando somos confrontados com a fragilidade do nosso ideal de perfeição, tendemos a exercer mecanismos de defesa para afirmar a nossa “superioridade” em relação àquela minoria e abafar nossos medos e preconceitos a respeito dos nossos próprios limites. Daí nasce o comportamento discriminatório, uma das piores características do ser humano.
Na semana passada, uma menina de apenas 07 anos, acometida há seis meses pela diabetes tipo 1, foi um exemplo típico de uma vítima dessa comportamento nocivo, como ficou notório nas redes sociais. A resposta do colégio a essa situação delicada foi a pior possível, só reforçando uma filosofia antiquada e preconceituosa contra as diferenças, que tanto incomodam o ser humano - chegou-se ao absurdo de afirmarem que o comportamento discriminatório era necessário para que a menina não fosse discriminada!
Focando o problema apenas nas crianças, exemplos como o descrito acima não faltam e a abordagem nas escolas, quando ocorre, costuma ser tímida e pouco objetiva. Fala-se muito em “não ter preconceito”, algo impossível, como demonstrado acima, já que o preconceito faz parte da formação da nossa personalidade. O que é preciso dizer, sem hipocrisia, é que o preconceito existe e que, se não for reconhecido e adequadamente trabalhado, poderá levar a atitudes discriminatórias muitas vezes injustificáveis e, em casos extremos, descambar para o bullying e outras formas mais abertas de violência social e psíquica.
Uma abordagem que sempre surte efeito e que pode ser facilmente usada, são as palestras com exemplos inspiradores de superação de diferenças. Exemplos como o de Hector Castro, atacante e maior ídolo da seleção uruguaia campeã da Copa de 1930, que não tinha uma das mãos; ou de Fanny Blankers Koen que, aos 30 anos e já mãe de duas filhas, ganhou, contra todas as probabilidades, quatro medalhas olímpicas em 1948 (não houve as Olimpíadas de 1940 e 1944, quando Fanny estava no auge da forma física, por causa da II Guerra e a percepção geral era a de que seus anos de ouro já tinha passado) e o título de atleta feminina do século; ou do físico Stephen Hawking, que, apesar de uma rara doença degenerativa que praticamente o isolou do mundo, é considerado um dos mais importantes cientistas da atualidade.
Outra dinâmica que pode ser sugerida para os pedagogos é a de convidar as crianças a enumerarem suas deficiências e limitações, visando uma mais fácil inclusão da criança com algum tipo de necessidade especial naquele grupo.

Em uma era de mudanças rápidas e informação imediata, como a que vivemos, não há mais espaço para idéias cristalizadas e arraigadas em conceitos antiquados. Termos como “diga não ao preconceito” soam incompletos. Precisamos reconhecer que a discriminação gerada pelos maus preconceitos existe é o principal fator de sofrimento que pais, alunos e instituições precisam enfrentar, se quiserem um bom lugar ao sol em uma sociedade cada vez mais plural e mais aberta a acolher as diferenças, apesar de todos os desafios que ainda temos pela frente.


terça-feira, 4 de junho de 2013

QUANDO A TRAGÉDIA BATE À PORTA

“Nós não pedimos para ser eternos, mas apenas para não ver os atos e as coisas perderem subitamente o seu sentido. O vazio que nos rodeia faz-se então sentir...”

Antoine de Saint-Exupéry, em Vôo Noturno


Eu não conhecia o Thiago. Era uma criança de três ou quatro anos, como os meus filhos. Estudava na mesma escola que eles e estava com aquele uniforme que me é tão familiar. Possivelmente, nos esbarramos em alguma festa de Natal na casa de um tio da Júlia, já que havia algum grau de parentesco entre eles; soube, mais tarde, que ele foi a uma das festas de aniversário dos meus meninos. Thiago poderia ser só mais uma criança anônima em meio à nossa correria do dia-a-dia, mas, ontem, nossos destinos se cruzaram. Um barulho terrível na rua para onde dá a janela do meu consultório. Gritos desesperados. Um atropelamento. Interrompo a consulta e vou até lá ver o que houve. Em dois ou três minutos, vejo uma criança estirada, escoriada, completamente ensanguentada, inconsciente; do seu ouvido, saía muito sangue. Seguindo o instinto de médico, desobstruo vias aéreas, verifico a respiração e o pulso, nessa ordem. Alívio. Thiago respira e mantém a pulsação, embora fraquinha. Suavemente, eu e mais dois desconhecidos fomos massageando seu coraçãozinho até que o socorro chegasse. Olho suas pupilas dilatadas, sem vida, sem resposta à luz. Penso no pior. Não consigo dividir isso com ninguém e prossigo, maquinalmente. Eventualmente, acaricio seu rostinho machucado e sussurro "aguente aí, amiguinho, nós vamos te ajudar". Ele ainda respira e pulsa quando os Bombeiros e o Samu chegam, mas é tarde. Uma provável fratura de base de crânio e hemorragia intracraniana já haviam selado seu destino. Soube, depois, que ele teve uma hemorragia torácica grave. Pouco mais de duas horas depois do acidente, as tentativas  de reanimá-lo cessam. A multidão vai se dispersando. Os policiais cuidam da parte burocrática e fico aguardando a perícia na companhia de um dos avôs. Quase não nos falamos, perplexos diante da fragilidade da vida. Perplexos em pensar como, em um átimo, projetos inteiros se desmoronam, vidas - de quem foi e de que fica - são despedaçadas. Perplexos diante da nossa impotência em tal situação. Penso que o Thiago estava correndo feliz e, no segundo seguinte, a Morte - fria, pragmática, inflexível e implacável - tirou ele de nós. Chego em casa e abraço meus filhos. Sussurro no ouvido deles que, a partir de hoje, tem um novo anjinho protegendo suas vidas. Eles sorriem. Choro muito. Nem me lembrava de quando havia chorado pela última vez; a dureza da vida e as agruras da profissão nos deixam frios, distantes, diante de dramas mais corriqueiros. Penso em como a pressa, a impaciência e a vaidade nos afastam do que realmente importa. Thiago me fez lembrar disso intensamente ontem. Prometo que não te esquecerei, meu amiguinho! Aí, ao lado do Papai do Céu, olhe por nós!

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

FORMA X CONTEÚDO

O texto que se segue bem que poderia ter o subtítulo de "noções de psicopatologia para leigos", pois tenta explicar a essência da principal ferramenta que o psiquiatra e o psicoterapeuta têm para suas condutas: o exame do estado mental ou exame psicopatológico. 
Freqüentemente, aqui no consultório recebo clientes que se preocupam em relatar, com a maior minúcia possível, os detalhes de uma situação específica que os levou a procurar ajuda. Claro que, quanto mais rica for a narrativa (ou o conteúdo do discurso do cliente), mais elementos o profissional tem para formar seu raciocínio, mas o que a maioria não percebe é que, o que mais diferencia uma boa consulta psiquiátrica de um bom papo com seu melhor amigo, é a capacidade do profissional de enxergar a forma com que esse conteúdo é colocado. Para ilustrar, imaginemos algumas situações. 

Primeira situação: uma moça descreve um grande sofrimento (digamos que o pai seja alcoólatra e ela tenha medo de que ele a moleste ou que essa mesma moça esteja sendo vítima de algum tipo de chantagem do namorado, por exemplo) de maneira desesperada, aos prantos e no limite do que ela parece dar conta de suportar. Agora, imaginemos uma outra moça com a mesma idade, mesma condição social e mesmas características físicas descrevendo rigorosamente a mesma situação que lhe traz sofrimento, mas que, no lugar do desespero da primeira, narra sua dor de maneira aparentemente ingênua, chegando mesmo a sorrir diante de detalhes mais embaraçosos.

Segunda situação: três amigos estão conversando em um bar quando um quarto conhecido chega e insulta um deles. Perplexo, outro se pergunta o que está havendo e o terceiro responde que o insultado dormiu com a ex-namorada do agressor. Agora imaginemos rigorosamente a mesma cena, mas que a explicação seja a de que o agressor teve um acidente de carro, bateu com a cabeça e, desde então, tem tido um comportamento estranhamente impulsivo.

Creio que o leitor já percebeu qual é o ponto que quero defender. Por mais minuciosa que seja uma narrativa, o mais importante para o ponto de vista de um profissional é determinar - e, se possível, ajudar o cliente a enxergar - em que bases está fundamentada a essência do seu sofrimento - e, nem sempre, a essência desse sofrimento está ligada a fatos concretos da maneira que são vistos pelos pacientes. Nos dois exemplos citados, embora o conteúdo dos problemas seja, essencialmente, o mesmo, é a clareza da visão da forma que irá determinar condutas completamente diferentes e expectativas mais realistas quando ao resultado dessas condutas.
Na prática rotineira do consultório, costumo comparar a visão do psiquiatra à de um técnico de futebol assistindo o jogo da arquibancada, podendo assim, ter perfeita noção do desenho tático da partida que se desenrola, enquanto que o cliente, via de regra, tem a visão do jogador que está em campo: mais próxima, mais detalhada, porém mais estreita do que está acontecendo para que seu desempenho esteja dentro ou fora de suas expectativas. 
Nos dias de hoje, diante da necessidade de padronizar diagnósticos e condutas, a psicopatologia é uma ciência que vem sendo equivocadamente substituída por diagnósticos criteriológicos que empobrecem a prática psiquiátrica e inviabilizam qualquer abordagem mais global do sofrimento dos pacientes; no caso do profissional que não domina bem a psicopatologia, o máximo de compreensão empática que ele pode oferecer é a mesma do exemplo acima, a do velho amigo em uma mesa de boteco.
O domínio da psicopatologia é tão importante que, embora não seja psicoterapeuta, freqüentemente me deparo com clientes insistindo para marcarem horário semanalmente (ou até duas vezes por semana) aqui no consultório. Para quem está chegando agora ao mercado, fica a sugestão, que me foi dada ainda no primeiro ano de residência por um preceptor que acabou se tornando um grande amigo e é um dos mais sensíveis psicoterapeutas que já conheci:

"Não se preocupe tanto com tratamentos sofisticados, aprenda primeiro a fazer um diagnóstico perfeito; não se preocupe, inicialmente, com a arte da psicoterapia, aproveite todo o tempo que tiver para dominar primeiro psicopatologia"

Infelizmente, o que mais se vê por aí é justamente o contrário.





Karl Jaspers (à esquerda) e Sigmund Freud (abaixo), os criadores da psicopatologia clássica e da psicopatologia psicanalítica, respectivamente: riqueza de conhecimento que tem sido subaproveitada.


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

FÁBRICAS DE DIPLOMAS

Quem tem hoje menos de 25 anos, talvez não faça idéia da dimensão do significado do vestibular no imaginário dos jovens há 15 ou 20 anos. Em meio à explosão hormonal, iniciação sexual, primeiros porres, aproximação da sonhada licença para dirigir e tantos outros estímulos que acabam de moldar a nossa personalidade, havia o temido "funil" do vestibular, que determinaria se (e não em que faculdade) teríamos ou não a profissião dos sonhos. Ser ou não bem-sucedido no vestibular era visto como determinante para o futuro profissional dos jovens de então, em uma época de inflação galopante, explosão da violência urbana e enormes incertezas sobre o futuro (a propósito, a única certeza que permanece imutável é a de que o Brasil é o país do futuro...).
Mesmo nos dias atuais, apesar deste ritual de passagem ter ficado um tanto banalizado pelo aumento exponencial de vagas em faculdades, a vida universitária continua a exercer seu fascínio e, foi com este pano de fundo que, em 2003, fui dar aula em uma tradicional universidade privada no interior de MG. Como o questionamento dos alunos era freqüente sobre qual era a utilidade prática, para a carreira deles, da matéria que eu lecionava, um dia parei a aula para refletirmos juntos sobre a vida acadêmica, começando com a seguinte pergunta, que acabou se tornando o tema das aulas inaugurais de todas as minhas turmas:

"- O que vocês acham que estão fazendo aqui na Universidade?"

Nesta e nas outras duas faculdades em que tive a oportunidade de lecionar, a totalidade das respostas foram variações sobre "aprender uma profissão". Não chega a ser uma resposta incorreta, mas certamente, incompleta.
Basicamente, uma profissão ou ofício se aprende vendo os outros a praticarem - se possível, sob supervisão. Sapateiros, artistas, cirurgiões, bancários, padeiros, engenheiros, pedreiros, atletas, funcionários públicos, pesquisadores, psiquiatras... enfim, toda a sorte de profissionais que pudermos imaginar, parte de um modelo pré-estabelecido e vai imitando-o e aprimorando sua técnica até se transformar em um profissional de excelência. Fatores que corroboram o raciocínio acima são a freqüente observação de que os alunos saem "crus" das universidades e a enorme frustração dos recém-formados quando se deparam com a dura realidade da vida "real", na qual vão encarar (ou não) a profissão que escolheram em um ambiente completamente estranho ao mundo acadêmico.
Se fosse verdade que os alunos estão na faculdade apenas para aprender uma profissão, não poderia haver um enxugamento da grade curricular com enfoque em disciplinas mais objetivas que preparem melhor o aluno para enfrentar a realidade com a qual irão se deparar após a formatura?
Tentador, não?
Certamente. Mas o que, infelizmente, a imensa maioria dos acadêmicos não percebe, é que, muito mais do que habilitar o aluno para um ofício, a carreira universitária existe (ou deveria existir) para que a pessoa aprenda a pensar. O domínio da técnica da profissão escolhida vem por conseqüência. Não creio que exista um modelo ideal de ensino superior nem sou letrado no assunto, mas olhemos para dois exemplos de exuberância em desenvolvimento econômico, científico e tecnológico da civilização ocidental, os EUA e a Alemanha.
No primeiro, o aluno faz cerca de dois anos de uma espécie de "ciclo básico" na universidade escolhida para só depois determinar qual carreira irá seguir. Diferentemente do que ocorre no Brasil, com currículos engessados e previsíveis, cujo ciclo básico acaba sendo visto pela maioria como "aquele monte de matérias inúteis", nos EUA os alunos têm liberdade para estudar história, arte, filosofia e sociologia junto com bioquímica, cálculo ou fundamentos do direito, à sua escolha. Enfim, por lá, no ciclo básico de dois anos ou mais, o aluno se dedica a expandir seus horizontes.
Na Alemanha, ainda na escola, o aluno, dependendo do seu desempenho, já vai sendo direcionado para a carreira universitária (Realschule) ou para os cursos técnicos (Hauptschule), já se acostumando, no caso dos alunos da Realschule, ao pensamento acadêmico antes mesmo de entrar em uma das conceituadíssimas universidades alemãs. Caracteristicamente, a cultura alemã valoriza muito os profissionais de nível técnico e não há o sentimento de inferioridade no aluno direcionado para a Hauptschule.
Em ambos os casos, mais do que formar profissionais, as universidades se dedicam a formar pensadores.
 
Como dito acima, não há aqui nenhuma defesa de um modelo ideal de ensino, mas, comparando os exemplos acima com o que se vê no Brasil, fica fácil perceber que algo está errado com o nosso ensino superior, cada vez mais voltado para facilitar o caminho do aluno em direção a diplomas e habilitações que pouco acrescentam nas suas vidas - são, basicamente, autorizações para exercer determinado ofício. Enquanto houver enfoque em "aprender uma profissão" - que, como dito acima, acaba sendo aprendida de uma forma ou de outra, independentemente do conhecimento formal -, estaremos cada vez mais longe da vocação estabelecida com a criação da Universidade de Bolonha em 1088: formar uma elite intelectual que garanta o futuro da nação.
No caso específico das faculdades de Medicina, devido ao alto custo - financeiro e emocional - do curso, corre-se o risco da frustração dos egressos ser ainda maior.
 
Brasão da Universitá di Bologna, considerada a primeira Universidade moderna do mundo ocidental. Confrontado com o propósito da sua criação, o ensino superior no Brasil parece piada.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A FALÁCIA DO MARKETING PESSOAL

- Cartão de visitas sempre à mão!
- Não deixe o celular impresso no cartão de visitas; anote-o à mão na frente do paciente, isso vai fazer com que ele se sinta especial.
- Invista em blocos personalizados e diferenciados.
- Crie um e-mail corporativo, deixando o de servidores livres apenas para uso pessoal.
- Jamais use canetas de propaganda ou dessas baratinhas de papelaria.
- Não demonstre excesso de disponibilidade ou não será valorizado pelo seu paciente.
- Nunca marque uma consulta para o mesmo dia, a não ser que seja algo urgente.
- Restrinja os horários disponíveis na agenda e concentre os pacientes em horários próximos para dar idéia de que o consultório é movimentado.

Essas e inúmeras outras baboseiras são alguns dos mandamentos básicos de quem quer se "diferenciar" no mercado, segundo os gurus que costumam cobrar os olhos da cara por palestras sobre sucesso pessoal (e sempre aproveitam para vender seus livros, garantindo o próprio sucesso), e quando, do alto dos meus 25 anos, terminei a residência médica e resolvi investir no consultório particular, procurei segui-las à risca, não questionando muito sua eficiência. Investi mais do que podia em uma sala luxuosa em um edifício comercial bacana, fiz tudo como manda o figurino e, surpreendentemente, após um ano, o resultado foi... desapontador! Sem mais dinheiro para bancar a aventura, me recolhi à minha insignificância, realizei um belo prejuízo deixando a mobília cara com o ex-sócio e comprei uns móveis baratos em dez vezes sem juros para recomeçar em um lugar mais condizente com minha realidade. Como eu andava completamente quebrado, fui protelando todas as medidas às quais fui tão atento na minha primeira empreitada, até que me descobri protelando-as todas - sem exceção - até hoje, dez anos depois.
Mais ou menos na mesma época da falência do meu primeiro consultório, eu andava pensando em levantar um dinheiro para fazer um grande negócio junto com uns amigos, mas precisava de assessoria jurídica para dar andamento à coisa. Liguei para um renomado advogado que me indicaram e, na conversa inicial, quando eu esperava que ele se mostrasse ocupado e fosse o mais breve possível, forçando uma visita com hora marcada ao seu escritório, ele fez o seguinte comentário:

- Dr. Luís, eu estou absolutamente à sua disposição. Vamos tirar todas as suas dúvidas por telefone no tempo que for necessário. Depois, se o Sr. achar que é o caso, marca com seus sócios uma visita aqui no escritório.

Essa experiência me marcou profundamente. Como é que um advogado bem-estabelecido poderia ter tempo para dedicar a um moleque recém-formado que queria fazer um negócio maluco que, obviamente, deu em nada? Depois desse, foram mais três ou quatro telefonemas, sempre com a mais absoluta disponibilidade ou com breve retorno caso o advogado estivesse ocupado. Curiosamente, nunca o conheci pessoalmente e tampouco ele me cobrou um único centavo pela sua assessoria preliminar.
Mais tarde, após ter acumulado alguma experiência, pude perceber que ele usou a única ferramenta realmente eficaz para o sucesso profissional (além, é claro, da excelência técnica): a autenticidade. Até hoje é possível lembrar, no seu discurso, um interesse genuíno em me ajudar, orientar, tirar obstáculos, iluminar meu caminho - enfim, fazer o seu trabalho da melhor forma possível.
Trocando em miúdos, se você valoriza relógios e canetas sofisticadas, gosta de se vestir com apuro ou preza o design em seus objetos de trabalho, invista nisso, mas para o seu próprio prazer, nunca para impressionar seu interlocutor que, invariavelmente, vai estar muito mais concentrado no problema que o levou a te procurar do que na marca da sua camisa ou no tipo de papel do seu receituário.
Na sociedade atual, na qual, entre os livros mais vendidos, sempre estarão uma meia-dúzia cujo título começa com "Como" (como ficar rico, como enlouquecer um homem na cama, como virar chefe em um mês, como atingir a paz espiritual, como comer mais do que precisa e não engordar, como se casar, como se separar, como criar filhos bem-sucedidos, como ser mais feliz que seu vizinho, como isso, como aquilo...), querendo fazer crer que sucesso e realização pessoal possam ser alcançados seguindo uma simples receita, a lição aprendida com alguns telefonemas para um profissional de excelência foi bem mais proveitosa. E, para os mal-humorados que estão pensando "e daí, o que o advogado ganhou com isso?", podem saber que não foram poucos os clientes que recomendei ao seu escritório nesses anos. Sem cartãozinho de visita.


Capa de livro escolhida aleatoriamente no Google - muita gente ainda acredita nisso


terça-feira, 31 de julho de 2012

CULTURA (NEM SEMPRE) INÚTIL

Uma dos requisitos mais importantes de quem se propõe a prestar um serviço que depende, essencialmente, de criar empatia com o interlocutor, é ter uma boa bagagem cultural. Diagnosticar e tratar quadros médicos cotidianos não é lá muito difícil, mas perceber as sutilezas das demandas dos pacientes e de se diferenciar a ponto dele perceber que sua escolha por este ou aquele profissional realmente valeu a pena depende da nossa capacidade de entender e penetrar em seu universo. Assim, não é raro me ver discutindo especulação na bolsa de valores, viagens internacionais, publicidade, geopolítica, arte, história, filmes clássicos, moda feminina, música clássica, aviação e - óbvio para quem me conhece - carros antigos, entre outros temas tão diversos quanto fascinantes. Tais discussões costumam ser o caminho mais fácil para conquistar a empatia necessária para a chamada "aliança terapêutica", através da qual os tratamentos tendem a ser muito mais eficientes, mas não é exatamente isso que se pretende discutir aqui hoje.
Apesar de ter uma bagagem razoável para transitar por temas tão diferentes quanto os que citei, não me considero, naturalmente, especialista em nenhum deles, mas o interesse genuíno pelo discurso do interlocutor pode, de vez em quando, produzir resultados surpreendentes como o que narro a seguir, ocorrido há poucos meses.
Tenho um cliente que é absolutamente fascinado (o mais correto seria dizer "adoecido" ou "enlouquecido", mas não ficaria bem em um blog sobre um consultório psiquiátrico...) por aviação. Perto dele, apesar de entender um pouco do tema, posso me considerar um "aspirante a principiante" e, como seu quadro psiquiátrico tem estado sob controle, sempre sobra tempo, nas consultas mensais, para um ótimo papo sobre aviões e suas histórias.
Paralelamente a isso, um grande amigo de cerca de 30 anos de idade, diabético desde os 15, andava chateado porque foi detectada uma degeneração em sua retina atribuível ao quadro de diabetes, apesar do seu rigorosíssimo controle da glicemia e de atividades físicas regulares. Esse amigo mora há cinco anos na Ásia e, por contingências profissionais, viaja muito pelo mundo.
Voltando ao cliente dos aviões, estávamos conversando sobre os primórdios da aviação civil e os problemas que foram sendo superados com o progresso da tecnologia aeronáutica, até que ele citou um desafio que continua inalterado em um século de história:

- Pois é, Doutor, veja que coisa curiosa. Desde cedo, percebeu-se que diabéticos têm tendência a ter descolamentos de retina quase imperceptíveis em vôos mais longos. Pensou-se que, com a pressurização das cabines isso não ocorreria mais, mas esses descolamentos continuam acontecendo...

Para um diabético que voa uma ou duas vezes por ano em viagens de turismo, a repercussão dessa observação só é significativa em um prazo de décadas, mas para esse amigo, que chega a fazer três vôos intercontinentais por ano, fora a infinidade de vôos pelo sudeste asiático, o organismo já cobrou seu preço - felizmente, ainda perceptível apenas em exames sofisticados, de modo que ainda é perfeitamente possível uma evolução benigna se alguns hábitos forem modificados, o que já está sendo feito após o meu alerta e a consulta dele ao especialista.
Cabe dizer aqui que este amigo é acompanhado por um endocrinologista e um oftalmologista, ambos de competência inquestionável, mas que não tinham levantado essa possibilidade, talvez porque a informação seja muito mais familiar ao meio aeronáutico do que ao meio médico, até pela rotina intensa de vôos que é necessária para que o problema se manifeste, algo ainda relativamente pouco comum no Brasil.
De qualquer forma, fica um relato bem ilustrativo de como "sorte" e "acaso" tendem a sorrir mais para quem está atento a pequenos detalhes, mesmo quando a consulta médica objetiva já aparenta ter dado tudo o que tinha que dar.
Os clientes agradecem (e, nesse caso específico, agradecem uns aos outros...).


Um Junkers Ju-52 dos anos 30 e um Antonov 225 atual. Apesar dos avanços tecnológicos, os diabéticos continuam penalizados pela aviação

quinta-feira, 19 de julho de 2012

PSIQUIATRIA E ARTE

"Pode ser que você ainda não tenha se dado conta disso, mas o fato é que todas as coisas belas do mundo são filhas da doença. O homem cria a beleza como remédio para o seu medo de morrer. Pessoas que gozam de saúde perfeita não criam nada. Se dependesse delas, o mundo seria uma mesmice chata. Por que haveriam de criar? A criação é o fruto do sofrimento" - Rubem Alves

Certa vez, um determinado laboratório estava promovendo seu medicamento, ao qual vamos chamar pelo nome fictício de "Deprimex", associando-o à figura de Van Gogh. Assim, a cada mês em que eu recebia a visita do representante, vinha junto uma reprodução de alguma obra do mestre holandês ou um livro sobre sua turbulenta biografia, sempre enfatizando o diagnóstico de transtorno bipolar do qual ele padecia. Até que, um dia, o pobre representante perdeu a chance de ficar calado:

- É, doutor, se já extstisse o Deprimex naquela época, o Van Gogh teria vivido bem melhor...
- Mas não seria o grande Van Gogh que conhecemos - foi o que consegui responder.
Auto-retrato de Vincent van Gogh (1887-88)
Vivemos em uma época de estranhas contradições. Em um mundo que, cada vez mais, apregoa a igualdade racial, inclusão social, defesa de minorias e tudo mais, nunca se viu tamanha "medicalização" da angústia inerente à existência humana, o que pode, em última análise, ser visto como uma contraditória intolerância com as diferenças - se alguém saiu do padrão esperado, certamente enquadra-se em alguma doença, segundo esse raciocínio.
Crianças agitadas são descuidadamente diagnosticadas como hiperativas, perdas e frustrações se tornam justificativa para tomar antidepressivos e qualquer rompante de mau-humor é suficiente para classificar o sujeito dentro do "espectro bipolar", isso para ficar apenas na área da psiquiatria.
Naturalmente, me refiro, nos exemplos acima, à medicina mal-feita, de consultas de 10-15 minutos a cada dois meses, que só se preocupa em tratar sintomas e nunca tem tempo para compreender a complexidade do momento vivido pelo indivíduo, mas, infelizmente, é a essa medicina que a grande maioria do público tem acesso e, diante da facilidade em passar um "remedinho" como resposta a sofrimentos muitas vezes subjetivos, fica o alerta para uma perigosa tendência de pasteurização de uma sociedade cada vez menos criativa - e, naturalmente, mais angustiada.
Mas, ao contrário do que, eventualmente, possa parecer ao grande público, a Medicina não é vilã nessa história. Se o infeliz exemplo do Deprimex para resolver os problemas do Van Gogh pode ser visto como emblemático de um ponto de vista distorcido a respeito dessas excelentes ferramentas que são os psicotrópicos, deixo com os leitores um pequeno texto que escrevi em 2006 a respeito de um dos Concertos para Piano mais famosos da história, que, incidentalmente, cita como foi decisivo o papel de um médico na história do compositor.

Rachmaninov – Concerto para Piano e Orquestra no. 2
 A música na Rússia seguiu uma trajetória diversa daquela produzida no restante da Europa durante o século XIX. As formas e as diretrizes de composição no Velho Continente foram estabelecidas ainda no final do século XVII e, enquanto os mestres ocidentais expandiam as formas da música erudita – movimento iniciado por Beethoven e consolidado pelos românticos no início do século XIX – os russos ainda começavam a estruturar a sua própria escola de composição. Esse relativo atraso se justificava pelo próprio atraso político e econômico da sociedade russa, predominantemente autocrática e agrária e ainda sob grande influência da Igreja Ortodoxa. Não obstante, membros de uma elite abastada e de uma classe média incipiente perceberam que, após a vitória sobre Napoleão Bonaparte, a Rússia deveria se projetar para o mundo ocidental. Logo surgiriam os criadores de uma expressão genuinamente russa de arte que antecipariam os gigantes da segunda metade do século. Assim, Puchkin, na literatura, precedeu Dostoievski e Tolstoi, enquanto Glinka antecipou Mussorgsky e Tchaikovsky na música. No caso dessa última, houve uma importante cisão, com a escola de Mussorgsky (também conhecida como “O Grupo dos Cinco”, ou Kuchka) defendendo que uma arte genuinamente russa não deveria seguir os padrões de elaboração estabelecidos pelo ocidente e antagonizando Tchaikovsky, cujo ponto de vista era o de que o colorido eslavo deveria ser dado a formas acadêmicas de composição. Fosse de quem fosse a razão, uma escola russa de música estava estabelecida na virada do século XX, pronta para dar ao mundo uma nova safra de notáveis compositores que dominariam o cenário musical na primeira metade do século, principalmente após a Primeira Grande Guerra, como Scriabin, Rachmaninov, Stravinsky e Prokofiev.
Sergei Rachmaninov (1873-1943) foi, possivelmente, o maior pianista do século XX. Formado no renomado Conservatório de Moscou, soube captar de modo muito peculiar a tendência de ocidentalização da música russa iniciada por Tchaikovsky, mas alcançando uma estrutura formal e um equilíbrio estético raramente atingidos por aquele em seus concertos e sinfonias. Sua vida foi marcada por sucessos internacionais interrompidos por graves crises depressivas e terminada com rumores de suicídio (na verdade, o compositor morreu de câncer de pulmão, na sua mansão em Beverly Hills, pouco antes de completar setenta anos). Produziu freneticamente em alguns períodos e praticamente se retirava da vida pública em outros. Seu concerto para piano e orquestra no. 2 op. 18, um típico exemplo da produção do romantismo tardio, data de 1901 e viria a se tornar a sua obra mais conhecida. A história da produção desse concerto ilustra bem o que foi a vida do compositor: já consagrado como virtuoso do piano, ele compõe sua primeira obra de grande envergadura, a sinfonia no. 1, de 1897, que foi muito mal recebida pelo público. Acometido por grave crise depressiva, ele queima a obra e se retira da vida pública com fortes tendências suicidas. É tratado, então pelo psiquiatra Dr. Nikolai Dahl que, com a técnica de hipnose e sugestionamento, convence Rachmaninov a criar um novo concerto para piano. Animado com a nova empreitada, ele compõe o seu Segundo Concerto de maneira febril e o sucesso dessa obra inaugura um período de grande produtividade para o compositor que culminaria com o concerto para piano no. 3 e o poema sinfônico “A Ilha dos Mortos”, ambos de 1909 e feitos especialmente para uma turnê pelos EUA.
A melodia apaixonada do Segundo Concerto, marcado pelo colorido fortemente eslavo e pela virtuosidade, é contida em uma estrutura formal iniciada por Vivaldi ainda no alto barroco italiano, porém bastante expandida. O primeiro movimento, o mais complexo e desenvolvido, nos mostra uma seqüência de temas expostos de maneira rapsódica, sem o típico desenvolvimento com antagonismos de tema e contra-tema que marcaram a música erudita européia até o movimento impressionista. O solista duela com a orquestra de maneira muito virtuosística com seqüências que beiram os limites das possibilidades físicas para o pianista. O segundo movimento, cheio de lirismo, quase uma reconciliação do piano com a orquestra, nos permite perceber a típica construção melódica do compositor que, segundo vários críticos, foi o grande inspirador (alguns dizem que foi mais do que isso) das melodias dos clássicos de Hollywood. O terceiro movimento, mais leve do que o primeiro, alterna um ritmo de dança com uma nova melodia de colorido eslavo que nos leva a um finale emocionante nitidamente inspirado em Tchaikovsky.
Poucos compositores tiveram uma carreira dividida de maneira tão clara quanto Rachmaninov: após a Revolução Bolchevique de 1917, ele se mudou definitivamente para os EUA e sua produção, embora sem perder o colorido eslavo, passou a sofrer influências das harmonias do Jazz (que também influenciaria a música erudita européia, particularmente a francesa). As grandes obras desse período são a sinfonia no. 3 e o concerto para piano no. 4, ambos datados dos anos 20; embora interessantes, soaram um tanto inautênticas para muitos entusiastas e jamais repetiram o sucesso das composições anteriores, talvez os últimos estertores do movimento romântico na história das artes.

Sergei Rachmaninov